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José Filipe Pinto

O elemento telúrico na vida de Adriano Moreira

 

Numa das obras que escrevi – Adriano Moreira: uma Intervenção Humanista – as personalidades que me honraram com depoimentos sobre vários aspectos da vida do sujeito de estudo fizeram questão de reconhecer a dificuldade que sentiram quando pretenderam sintetizar no reduzido número de páginas colocadas ao seu dispor uma vida tão multifacetada e preenchida de actos.

Cada uma dessas personalidades deveria pronunciar-se apenas sobre uma dimensão específica da vida de Adriano Moreira, mas a análise dos depoimentos permite constatar que nem todos seguiram essa regra, talvez porque alguns autores tivessem considerado redutor colocar o enfoque somente num campo de actividade e sentissem a necessidade de uma abordagem mais abrangente como forma de procurarem captar não o político, ou o cientista social ou o professor, mas a totalidade, ou seja, a pessoa.

Colocado agora na mesma situação, experimento uma sensação semelhante e não querendo repetir, mesmo que eventualmente aprofundando, ideias que me não pertencem, optei por analisar a influência de um elemento que, à falta de melhor designação, identifico como telúrico ou primordial, o qual, na minha opinião, constitui um factor relevante na vida de Adriano Moreira.

Como forma de tentar definir esse elemento, começo por me servir da conferência intitulada «Nordeste», proferida por Adriano Moreira, em 12 de Maio de 2006, na Casa de Trás-os-Montes em Lisboa, pois julgo que a mesma constitui um corpus privilegiado para a identificação do referido elemento. De facto, ao afirmar que «dos vários longes, ou físicos ou das memórias, à medida que os horizontes se alargam, e que as novas dependências e exigências se tornam mais densas, o sentimento das raízes parece vir socorrer a defesa da identidade originária, e lembrar a patria pequena que é a terra de origem», o autor estava a reconhecer as marcas ou influências da aldeia de Grijó de Vale Benfeito na sua vida pública e privada.

Nessa conferência, Adriano Moreira mostrou ter consciência que, ao longo da vida, a memória «vai apenas guardando registos selectivos», porque sabe ser «piedosa no embelezar das lembranças» e sabe fazer esquecer as razões que levaram a fugir da geografia da falta de oportunidades, uma partida que não significou a ruptura com muito daquilo que ficava para trás.

Aliás, num sentido mais profundo, talvez não seja correcto falar de uma partida, mas sim, de uma mudança do local de residência porque, na família «solidamente transmontana» de Adriano Moreira, os elementos originais continuaram presentes na cidade grande.

A mãe Leopoldina – curioso que esse seria, também, o nome da Imperatriz com cuja comenda, oficializada pelo Governo do Brasil, o Instituto Histórico-Geográfico de S. Paulo viria a condecorar Adriano Moreira em 1964 – serviu de elo privilegiado de ligação à terra ao assumir a condição, que considerava seu dever, de transmissora dos elementos culturais, entre os quais os religiosos assumiam um papel central.

A vida em Lisboa continuava a ser dura e o ordenado de polícia do pai António exigia o contributo das obras de costuras da mãe Leopoldina, sendo que estas não representavam um passatempo mas uma forma de suprir as necessidades de um núcleo familiar que aumentaria com a chegada da filha Olívia. Mas, tal como na aldeia, a mãe encontrava sempre tempo – que raramente era livre – para educar os filhos na fé recebida e professada.

Por isso, na conferência citada, Adriano Moreira reconheceu a importância dos pais porque, mesmo para cá dos montes, educaram os dois filhos «no amor à terra de origem, às suas tradições, às suas virtudes e costumes». Para lá dos montes, na aldeia – apenas geograficamente distante – ficara o avô Valentim, que, apesar de raramente se deslocar a Lisboa, continuava a servir de referência. Por isso, os três meses das férias grandes constituíam uma ocasião ansiosamente desejada para a reaproximação física.

É, sobretudo, nas figuras da mãe e do avô que considero que se encerra o referido elemento telúrico cujo sentido procurarei clarificar a partir de dois exemplos que têm em comum a preparação para o sono. Assim, foi com a mãe que Adriano Moreira aprendeu a rezar e, ainda hoje, não adormece sem dizer as orações aprendidas em criança. Quanto ao avô Valentim, não adormecia sem, já na cama e ao arrepio de toda a ciência médica, beber uma chávena de café.

Tenho para mim que, na verdade, as orações do neto e o café do avô – ninguém sabe aquilo que ocupava o seu pensamento enquanto o bebia – acabam por fazer parte de um mesmo ritual, ou seja, do acto de prestar diariamente contas à vida pelas acções realizadas ou adiadas e que sabemos serem da nossa responsabilidade, sendo que a circunstância de se dormir profundamente, ou como o povo diz, um sono dos justos, constitui a melhor prova do dever cumprido.

Na verdade, ninguém pode estar bem com os outros se não conseguir estar em paz consigo mesmo. Ora, esta atenção permanente à vida, esta auto-confissão diária, assume uma forma de religiosidade rural que faz de Deus, de Nossa Senhora e dos Santos – sobretudo do padroeiro, no caso o Senhor do Calvário – confidentes privilegiados de angústias e de esperanças. Existe, assim, uma empatia, e um quase companheirismo – ainda que sempre respeitoso – entre o homem e os Santos e que faz cada pessoa sentir-se acompanhada pelo seu anjo Custódio. Aliás, na conjuntura de então, era nessa religiosidade que o povo encontrava a resignação para as frequentes situações de dor e de sofrimento de que a Colheita do Senhor constituía prova inequívoca.

Assim, apesar do peso da vida ser, hoje como no passado, muitas vezes superior ao do andor da esperança que se carrega no dia do padroeiro, essa atenção que cada um julga merecer por parte de Deus conduz, até como forma de retribuição das graças recebidas – o povo contenta-se com pouco –, à preocupação com os outros e ao estabelecimento de solidariedades horizontais porque a ascensão social – geralmente derivada do saber – não dá lugar ao estabelecimento de solidariedades verticais, pois todos os «trabalhos são igualmente dignos».

É essa atenção para com o outro que leva Adriano Moreira a não usar «a palavra ou a caneta para atacar pessoalmente» (1) seja quem for, pois, como João XXIII pregava, não se deve «jamais confundir o erro com a pessoa que erra» (2).

Ao longo da vida de Adriano Moreira a presença do elemento telúrico é uma constante, prova de que lhe ficou de menino o conselho do avô – os conselhos para serem marcantes não necessitam de abusar das palavras – de não fazer às escuras o que não podia fazer às claras. Assim, ler um telegrama secreto e confidencial do Ministro, analisar um discurso ou intervenção parlamentar do Político, assistir a uma aula ou a uma conferência do Professor ou ouvir a opinião e o conselho do Amigo representam situações necessariamente diferentes, mas, em todas elas, a verticalidade, o humanismo e a honestidade intelectual estão presentes, independentemente do contexto, ou talvez porque o contexto seja apenas um – a vida terrena.

Este elemento primordial alimenta-se do ideal franciscano, que não recusa uma boa palavra, mas sabe que, mais do que as palavras, são os actos que rezam por nós. Actos que, na sua qualidade de acções assertivas, se exigem para preparar e acolher a mudança – urgente e inadiável e não apenas na aldeia – mas sempre no respeito pelas origens e na salvaguarda dos valores telúricos transmitidos ao longo das gerações.

Na apresentação do já referido livro que escrevi sobre a sua intervenção humanista e que se resumiu a uma viagem incompleta com paragem em alguns dos portos da sua vida, Adriano Moreira, numa intervenção emocionada, depois de voltar a recusar «qualquer ensaio paliativo» e de assumir toda a responsabilidade pela política ultramarina por si pensada e posta em prática, terminou com a frase: «Não consegui o êxito do meu pai».

A forma como a assistência – entre a qual se contava a esposa e a quase totalidade dos seis filhos – reagiu constituiu a melhor demonstração de que, ao contrário daquilo que é habitual quando se ouve o Senhor Professor, não se revia nestas palavras finais. Aliás, a reacção da assistência também serviu para mostrar que, felizmente, ainda era cedo para o tempo de balanço cuja definição só a Deus pertence.

Para mim, que me identifico por inteiro com o sentir do auditório, essa comunicação representou mais uma manifestação do elemento telúrico ou primordial porque a modéstia bebe-se com o leite materno – o chá dos pobres que não de espírito.


1) Pinto, J.F. (2007). Adriano Moreira: uma Iintervenção Humanista. Coimbra: Almedina, p. 22.
2) Ibidem, p. 102.

Doutorado em Sociologia. Professor da Universidade Lusófona.