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António Almeida Santos

Um académico, um político, um pensador e um escritor que honra Portugal

 

Convidado a escrever um texto, não muito extenso, sobre o meu particular amigo Prof. Dr. Adriano Moreira, nada me podia dar mais prazer. Com uma ressalva: um homem grande não cabe num texto pequeno. Mas aceito essa contrariedade.

Conheci o Prof. Adriano Moreira em Lourenço Marques, sendo ele ministro do Ultramar, que visitou a então colónia de Moçambique, aureolado da fama de brilhantíssimo jurista, e de político não alinhado com a visão imobilista da anterior política colonial. Isso conferiu-lhe, aos olhos dos democratas de Moçambique, em que me integrava, o crédito de uma cautelar esperança. Pouco depois, essa esperança encontrava justificação em três medidas, nas quais a opinião pública democrática e colonial não imobilista viu a justificação do crédito reservadamente concedido.

A primeira dessas medidas foi a criação de duas universidades. Uma em Luanda, outra em Lourenço Marques, das quais se esperava um impacto significativo na formação de elites culturais africanas, à data inexistentes. Tiveram, «cum grano salis», esse impacto.

A segunda foi a revogação, de uma penada, do sinistro Estatuto do Indigenato, que pôs fim ao «apartheid» entre indígenas e assimilados. Estes, computados na ninharia de cinco mil, desfrutando de uma situação jurídica próxima da dos colonos europeus. Aqueles, feridos de uma «capitis deminutio», que praticamente os privava do exercício dos direitos cívicos dos assimilados. Era-lhes aplicado um estatuto de menoridade cívica, sujeitos que estavam a uma tutela administrativa humilhante, e verdadeiramente abjecta. Uma quase «res nullius».

Adriano Moreira, com grande determinação e coragem, pôs termo a esse estatuto de menoridade cívica, ao arrepio de anteriores declarações públicas de Salazar, e até de Marcelo Caetano, na fase em que presidiu à Mocidade Portuguesa, durante a qual recusava aos indígenas africanos os mais elementares direitos de cidadania.

O Estatuto do Indigenato era o instrumento dessa indignidade.

A terceira medida traduziu-se na aprovação de um Código do Trabalho Rural que, à época, se antecipou às posteriores regulações jurídicas da matéria por outras administrações coloniais. O trabalho forçado, juridicamente, acabou aí, se bem que a realidade tenha imposto resistências perduráveis, como já tinha acontecido com as leis proibitivas da escravatura.

Era demais para o ditador. E esse três sãos atrevimentos, seguramente entre outros, ditaram a expulsão de Adriano Moreira do seu Ministério. A política Ultramarina do dito Estado Novo, tornou a ser velha, e velha se manteve até que o 25 de Abril lhe deu ordem de despejo.

Adriano Moreira regressou à sua carreira académica, e reforçou a cotação travada. Passou a ser respeitado como mestre de gerações de discípulos, quer através da cátedra, quer através de uma vasta e lúcida actividade como pedagogo e ensaísta, devotado, com particular entono à problemática ultramarina. Nessa actividade em particular, revelou-se um pensador profundo, e um expositor de raro talento pedagógico e literário.

Fui-o lendo e aprendendo com ele, até que Abril nos reaproximou na arena política democrática, na qual Adriano Moreira confirmou as suas qualidades políticas abruptamente interrompidas pelo ditador. Ouvi, deleitado, as suas intervenções no Parlamento e fora dele, nas quais a qualidade oratória e a elevação política se conjugavam para caracterizar um parlamentar de excepção.

Atingiu, naturalmente, a liderança do partido em que militava – o CDS-PP – mas a dignidade das suas atitudes e a sua concepção de democracia parlamentar, que não pactuava com excessos de eleitoralismo e de agressividade, não lhe permitiram eternizar-se no lugar. Abandonou a liderança com a mesma naturalidade com que a havia assumido. Valia por si próprio e não pelos cargos políticos que ocasionalmente desempenhou.

Regressou à sua carreira académica, agora a reforçar a ideia comum de que era, fundamentalmente, um professor, e ensinar era a sua paixão dominante. Mas o bicho da política continuava nele. E foi tendo participação cívica com significado político, nomeadamente através de livros com ideias dentro que foi publicando, e através de posições divulgadas através dos meios de comunicação social.

De há um tempo a esta parte delicia-nos e lecciona-nos através de colaboração semanal no Diário de Notícias, a latere do Dr. Mário Soares, que também semanalmente publica no mesmo diário artigos de opinião carregados de pedagogia e sabedoria política. E não menos de participação cívica múltipla a merecer destaque.

Dois mestres.

Como a idade, felizmente, parece não pesar num e noutro, ambos também – erigidos em verdadeiros fenómenos de dinamismo construtivo – continuam a publicar livros cuja leitura lecciona e apraz.

O último livro de Adriano Moreira, que li com verdadeiro deleite, foram as memórias da sua vida. Que excelente relato da sua já longa existência, da riquíssima experiência acumulada, e da sabedoria que foi capitalizando. Esse livro, entre muitos outros méritos, tem o de ter sido escrito numa prosa de excepcional brilho e qualidade, que se lê com deleite. Está nele o pensador; o pedagogo; o político; o raro ser humano que Adriano Moreira é. Chega a surpreender que a crítica literária, sobretudo a mais erudita, não tenha distinguido o livro, incluindo-o na galeria das obras-primas da nossa tão rica literatura de memória! Porque é isso que o livro é.

Apesar de nunca termos sido propriamente correligionários, não hesito em qualificar Adriano Moreira, como uma das mais lúcidas inteligências que tive o privilégio de conhecer. A amizade recíproca veio naturalmente por acréscimo.

Presidente da Assembleia da República, entre 1995-2002