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António Barbosa de Melo

Transmontano, português e cidadão do mundo

 

O Prof. Doutor Adriano Moreira acaba de doar à Biblioteca Municipal de Bragança boa parte da sua extensa e rica biblioteca, as suas condecorações e trajes académicos e outros símbolos da trajectória de uma vida expressiva dos mais altos valores espirituais, culturais, políticos e cívicos que identificam o Ocidente e a portugalidade.

Ao gesto de Adriano Moreira a Câmara Municipal de Bragança responde, muito justamente, com a criação de um espaço próprio para receber e tratar um património tão singular, abrindo-o ao uso e fruição dos cidadãos, em especial das novas gerações. Confesso sentir a maior honra e gosto de poder participar com um breve testemunho sobre Adriano Moreira no catálogo organizado para comemorar o acontecimento.

Um dos traços da personalidade do homenageado de hoje revela-se na sua enorme capacidade de admirar e de prestar atenção ao outro. Decerto que no seu discurso, coloquial ou erudito, as ideias ocupam posição central e dominante, ou não fosse ele um brilhante pensador, professor e comunicador. Mas, sem prejuízo desse conteúdo ou substância, a densa e variada obra de Adriano Moreira está povoada de muitas pessoas com rosto e nome, as quais dão colorido às suas razões e opiniões, expendidas em livros, conferências, entrevistas, artigos, comentários televisivos e diálogos de toda a sorte… Aliás, o autor cuida sempre de salvaguardar o respeito pela dignidade de todos quantos chama a terreiro, mesmo quando o seu discurso se compõe, como por vezes acontece, de lances caricaturais, divertidos e inesperados.

Essas referências pessoais da sua escrita e dos seus diálogos pertencem, digamos assim, à classe universal da humanidade. Estão aí tanto os simples, com quem viveu a sua infância em Campolide (Lisboa) ou em Grijó de Vale Benfeito (Macedo de Cavaleiros), como os companheiros de liceu (Passos Manuel, Lisboa), os condiscípulos e professores da Faculdade de Direito de Lisboa (Rocha Saraiva, Paulo Cunha, Marcello Caetano), os advogados de renome com os quais deu os primeiros passos da carreira forense (Acácio de Gouveia, Bustorff Silva, Ramada Curto), os pares do corpo docente do ISCSP (Jorge Dias, Almerindo Lessa, Narana Coissoró), os elementos da elite política do segundo e terceiro quartel do século XX (Oliveira Salazar, Sarmento Rodrigues) e os grandes do mundo que marcaram, numa ou noutra fase, o seu percurso cultural (Agostinho da Silva, Padre Teilhard de Chardin, Gilberto Freyre). Manifestação acabada deste pluralismo humano e de um diálogo cultural a múltiplas dimensões encontramo-la hoje no livro de memórias de Adriano Moreira A Espuma do Tempo, Memórias do Tempo de Vésperas (Almedina, 2008).

No meu testemunho gostava de poder apontar vários tópicos expressivos do pensamento ético-político de Adriano Moreira, que têm sido objecto de análises e abordagens suas de diversa índole no desenvolvimento da sua obra escrita. Mas tenho de limitar-me a enunciar, e muito em síntese, apenas um deles: o problema da identidade nacional, aliás olhado à luz do excelente estudo da Adriano Moreira «A identidade portuguesa» (2007), agora incluído no seu livro A Circunstância do Estado Exíguo (2009).

Preliminarmente, importa responder em geral à pergunta: que características se incluem no sentido do conceito identidade aplicado a um sistema social (Estado, Nação, Povo, Região, Empresa, etc.)?

A identidade, formalmente, refere uma relação de algo consigo mesmo, em momentos e locais diferentes, exprimindo a qualidade que consiste, como já escrevi há anos, em este algo se manter igual independentemente das variações de tempo e de espaço que ocorrerem. Goza desta qualidade, por conseguinte, aquilo que no tempo e espaço 1 apresenta determinadas características e no tempo e espaço 2 as conserva essencialmente inalteradas. No campo das Ciências Sociais, a identidade diz-se de grupos sociais particulares, isto é, de conjuntos humanos mais restritos do que o grupo tomado como referência (v.g. Humanidade, sociedade internacional, sociedade civil, etc.). Mas o reconhecimento da existência desta qualidade num determinado grupo social não supõe ou exige que todas as características, relevantes para o efeito, sejam fixas em si ou na ordem de precedência dos seus elementos.
Pode haver variações no sistema ou na composição ou arranjo dos seus elementos sem que este mude. A verdade é que os sistemas sociais sofrem continuamente de variações que não afectam a sua identidade. A noção, no que toca aos sistemas sociais, há-de designar, pois, uma entidade dinâmica.

Mas a pergunta acima subsiste sem resposta: que características fazem parte do conceito de Portugal, por exemplo, para o efeito de se avaliar a subsistência da sua identidade? Quais são, e como são, os elementos identitários do nosso País?

A identidade resulta de uma auto-identificação por força da qual os membros do grupo se reconhecem como diferentes de outros - sentimento este que, no caso de um povo ou nação, assenta no reconhecimento recíproco de uma história comum, de interesses e valores comuns, de um destino comum, o que implica por vezes, como diz Adriano Moreira, uma perspectiva «etnocêntrica». São representações que exprimem e sedimentam a cultura da comunidade em foco, operando como fonte de critérios para a apreciação dos comportamentos e a avaliação das expectativas, ocorrentes ou vigentes, no respectivo domínio de acção. Quer dizer: o núcleo significativo da identidade portuguesa - dir-se-á da portugalidade - residirá na estabilidade dos valores, dos comportamentos, das expectativas, do estilo de vida comuns, tidos como próprios do povo português, e, por outro lado, ligados ao sentimento de pertença do comum dos portugueses à sua comunidade nacional.

Ora, Adriano Moreira, no estudo que estou a comentar, apresenta um interessante contributo para o conteúdo da ideia de portugalidade. Logo nas origens haveria no território do Condado elementos diferenciadores, amalgamados por D. Afonso Henrique e os seus barões e, depois, plasmados pelo reconhecimento do Rei e do Reino pelo Papa Alexandre III, que puderam ser orientados para convergir «na unidade nacional assumida». Aí se conjugaram factos, como a língua, e mitologias étnicas, como os lusitanos, misturando história e lenda, em que se inscrevem também «os costumes, o amor à terra, as maneiras de amar, vestir, rezar, morrer», que, depois, foram dinamizados pela acção armada e a acção da expansão que acabaram por fazer do mundo «o globo dos soberanismos».

A crise da articulação entre a dinastia afonsina e a dinastia de Aviz (1385) já revelara que a nação portuguesa «incluía nos seus valores, a defesa de um poder político nacional independente». E Adriano Moreira entende dever lembrar, entre as características identificadoras de Portugal, a «estranha psicologia», posta a descoberto por uma longa linha da nossa tradição cultural (Oliveira Martins, João Franco, António José de Almeida), em que predomina a variável do desânimo, do pessimismo colectivo, que hoje vivamente sentimos perante a ameaça de Portugal perder as capacidades efectivas para cumprir satisfatoriamente as funções essenciais de qualquer Estado, caindo, por consequência, na categoria de Estado-exíguo. Devemos saber avaliar a conjuntura, diz o politólogo emérito, quando destaca as duas premissas desta: a «radical alteração do sistema político europeu», desligado do império euromundista, e o «crescente domínio da teologia de mercado que se tornou estruturante da União Europeia». Por meio da fórmula «teologia de mercado» denuncia Adriano Moreira, há anos, a absolutização das regras imperantes em mercados sem regulação, que descuidam «as políticas de acolhimento, de integração, de assimilação da mão-de-obra vinda da geografia da fome, erradamente recebida como se fosse de torna viagem».

Professor jubilado da Universidade de Coimbra. Presidente da Assembleia
da República entre 1991-1995.