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Manuel da Costa Andrade

Tributo a Adriano Moreira (e ao sonho transmontano)

 

1. Foi-me dado o privilégio de ficar associado à efeméride de apresentação do catálogo da Bilbioteca Adriano Moreira.
O que só foi possível mercê dum gesto de incomensurável generosidade do Senhor Presidente da Câmara de Bragança, Engenheiro António Jorge Nunes, figura de autarca paradigmático, a reincarnar, alguns séculos e muitas mudanças depois, o modelo de príncipe iluminado, a curar tanto da promoção das coisas da cultura e do espírito como da satisfação das necessidades materiais.
Interpretei a convocatória, esta foi pelo menos a impressão do destinatário, como um convite para deixar exarada e perpetuada a expressão de um tributo à figura ímpar de Adriano Moreira. E para fazê-lo com a autenticidade e liberdade com que transmontanos falam a transmontanos. Imperativo metodológico que leva consigo a exigência de renúncia às tentações de recurso aos ornamentos de estilo, que só podem introduzir ruídos no diálogo e indesejáveis momentos de distanciação.
O que deixo é, assim, o resultado breve dum momento de recolha e reflexão, aqui, duma varanda da Pousada de S. Bartolomeu, procurando convocar para a linha do horizonte a imagem de Adriano Moreira a sobrepor-se às muralhas medievais do Castelo.
Homem íntegro e bom. Intelectual de eleição e de excelência, aureolado de simplicidade, nobreza e generosidade, a prodigalizar lição e a repartir saber e conhecimento, sempre a convocar para limiares mais elevados e horizontes mais alargados. Por vocação e destino, viajante do mundo e da História; mas por vinculação genética, gosto e paixão, também homem de Trás-os-Montes e de Grijó de Vale Benfeito. Porque o Portugal e o mundo que «primeiro conheci e amei, era transmontano e tinha a sede principal em Grijó de Vale Benfeito».

2. Não sou nem fui fisicamente próximo de Adriano Moreira. Os contactos foram invariavelmente fragmentários e breves, por via de regra ditados pelas contingências da vida académica. Os mais intensos acabaram por ser os que vêm sendo propiciados pelo «Curso de Direito e Interioridade» que, com notável regularidade, a Faculdade de Direito de Lisboa e a Câmara Municipal de Bragança continuam a pôr de pé.
Separou-nos a diferença de geração e da trajectória de vida que as Parcas têm tecido para cada um de nós. Mas esta é só uma das verdades: a verdade das coisas que aparecem e falam aos sentidos. Para além dela, sobra a verdade da proximidade cultural e espiritual e, de certo modo, existencial. Que não conhece a servidão das categorias do tempo e do espaço, sobre os quais e à revelia dos quais se erguem os impulsos da alma, tecendo outras teias, outros laços, outras cumplicidades.
Deste outro lado da verdade, posso, com a autenticidade a que jurei fidelidade, falar de uma outra proximidade, de uma outra «con-vivência». Desde logo, avulta a experiência comum de uma mesma trajectória: de partir de uma recôndita aldeia transmontana à aventura da descoberta, conhecendo e vencendo mais dificuldades e obstáculos do que Ulisses.
Isto pressuposto, naturalmente, como prevenia Virgílio, que seja lícito comparar as coisas pequenas às grandes. Porque, obviamente, a semelhança é apenas de direcção e sentido dos percursos. Entre eles, medeia a intransponível diferença de altura a que um e outro se elevam.
A proximidade e convivência podem, do meu lado, comparar-se às da criança que de olhos fixos no céu, procura seguir a evolução do «papagaio» de papel que, lá bem alto, vê outros mundos a desdobrarem-se para além das linhas do horizonte.
Foi assim que fui acompanhando o magistério de Adriano Moreira.
Invariavelmente desperto pelo timbre inconfundível da sua voz, a riscar o silêncio com aquela limpidez que casa exemplarmente com a clareza meridiana do seu pensamento e das suas ideias.
E, mais ainda, pelo encantamento do discurso, invariavelmente orientado para o essencial das coisas e dos acontecimentos, a desvendar, sugerir ou incessantemente procurar, por detrás das mostrações fenomenológicas ou da espuma do tempo.
Pensamento e ideias sempre transmitidos com o calor que apaixona e com o magnetismo que enfeitiça o ouvinte ou o leitor. Pela predestinação carismática que deixa adivinhar o dom quase profético para ler os acontecimentos, os movimentos e as transformações políticas e interpretá-los como momentos de vésperas, de epifania de outros mundos e outros tempos.
Pelo arrojo e coragem, mas também pela sabedoria — a sabedoria de quem atravessa a noite a viver já antecipadamente a «aurora de róseos dedos» (Homero) — de todos os gestos, de todas as decisões. Invariavelmente tomadas ao encontro do futuro e quase sempre ao arrepio das resistências e inércias instaladas. É a coragem exemplarmente expressa em actos legislativos como a revogação do Código do Trabalho Indígena ou do Estatuto do Indígena; ou em acções de exposição física como a visita ao norte de Angola levando esperança e serenidade a comunidades despedaçadas nos corpos e nas almas.
Para além disso, decisões que se multiplicam a um ritmo alucinante na vida de Adriano Moreira, marcada pela presença constante de estrepitosas e trágicas «situações marginais» (Jaspers). Muitas delas a fazer adivinhar o apocalipse e o caos.
Já no plano pessoal — como o exílio, tanto mais insustentável e revoltante, quanto mais carregado da ignomínia da injustiça —, já no plano comunitário, nacional ou, mesmo global. E todas a provocar a perda irreversível de legitimidade de «construções sociais da realidade», que pareciam ter por si a legitimação cosmogonizada e estabilizada das estrelas. E, por vias disso, a abrir períodos de anomia axiological e de desregramento normativo. Porque as axiologias e os quadros normativos herdados haviam perdido eficácia e validade e ainda não era possível contar com ordenamentos alternativos com presa efectiva no consciente colectivo.

3. O carácter inevitavelmente fragmentário desta convivência à distância, não me terá permitido alcançar um retrato de corpo inteiro, na diversidade e plenitude de ângulos e traços. E, sobretudo, na densidade e profundidade do seu património humanista e dos seus códigos éticos e axiológicos. O que pude alcançar é, todavia, grande e impressivo bastante para justificar o mais irrestrito reconhecimento e gratidão.
Em cinzeladas apressadas e descontínuas, começo por evocar o jurista integral: que conheceu e aplicou Direito no contexto da Administração Pública, primeiro, e na barra dos tribunais, depois. E que a seguir veio ensinar Direito e nessa medida a co-criar e inventar direito nas salas de aula das escolas em que leccionou. Direito que, num estádio ulterior, veio a declarar e sancionar positivamente, na veste de legislador: com grande profusão e qualidade, no tempo relativamente curto em que foi legislador para o «Ultramar».
Convoco também o pensador e teorizador político, movido por ideais, apostado em desvelar e antecipar o futuro, de espírito livre e solto, apenas fiel às suas convicções e às matrizes principiológicas e axiomáticas em que radicam. Aberto e predisposto a ler e escutar criticamente sistemas ideológicos portadores de alternativas de ordenação do mundo e da vida, de pendor mais ambiciosamente holístico ou de teor mais contida e moderadamente reformista. Mas sempre armado de vigilância crítica, a denunciar ideologias de vocação escatológica auto-legitimadas na promessa de ultrapassagem da pobreza, mas passam indiferentes à sorte de pobres de sempre e tão reais como a «tia Emília… sem dinheiro, correndo com a bilha de leite para a ceguinha ou para a vizinha aflita».
Nesta linha, avulta ainda o europeu, desde cedo preocupado com os destinos da Europa, integrando movimentos e realizações sem conta, apostadas em projectar destino e sentido para o Continente, em excogitar soluções institucionais e trazê-las à vida.
Recordo o universitário insigne, criador de cursos e de universidades e sobretudo criador de discípulos, afinal o santo e a senha do universitário. E, para além disso, o pensador preocupado com o que verdadeiramente define a Universidade, o que nela é essencial e perene; e o que, pelo contrário é apenas pó da conjuntura ou expressão de desígnios de pessoas ou grupos apostadas em manter a Escola sob captura, vergada ao peso de caprichos ou interesses paroquiais.
De salientar ainda a circunstância de ter aproveitado a Escola, a investigação e o ensino para lançar oportunas e necessárias pontes com as escolas onde são ministrados os altos estudos militares.
Recordo ainda o autor de meditações — quantas vezes em voz alta — sobre os valores e as causas últimas da condição humana e do significado e sentido da existência.
Uma reflexão feita na companhia dos vultos maiores da filosofia humanista e a que a sua assumida condição de cristão empresta uma particular luz. E abre uma janela escancarada sobre a esperança e um irreprimível optimismo antropológico.
Convoco, por fim, como quem assenta a última pedra a fechar a abóbada, o transmontano de corpo e alma, que Adriano Moreira sempre foi, além do mais, porque sempre quis sê-lo. O homem do mundo que pisa os palcos mais expostos e mais elevados — do Vaticano à ONU — levando consigo, como diria Torga, uma paisagem nos cromossomas. Ou, na formulação mais colorida e concreta do próprio Adraino Moreira: «Quando se emigrava, vinha tudo isto com as pessoas, incluindo o gosto pelo pão de centeio, pelas alheiras, pelos salpicões, pelo presunto, e a saudade infinita da terra, dos santos, das festas, das rezas, e dos homens bons que representavam o saber tradicional e ficavam como pontos de referencia».
Elucidativo e expressivo um episódio aparentemente anódino e irrelevante: numa visita de Estado a um colonato, em Moçambique, Adriano Moreira, recebido por uma multidão, identifica imediatamente os transmontanos pelo folar que partem e oferecem.

4. Este mestre insigne acaba de oferecer à Câmara e ao povo de Bragança — e por suas mãos ao povo transmontano — a sua biblioteca. Isto é, o acervo dos livros que leu e escreveu, cada um deles a sinalizar um marco de um longo e profícuo percurso espiritual, ao longo do qual contribuiu para conformar o mundo e a vida e, sobretudo, se foi moldando a si próprio. Um percurso sempre inacabado, todos os dias recomeçado como se, não por condenação dos deuses, mas por projecto e escolha pessoais, fizesse sua a sorte de Sísifo.
Bem se poderá dizer que, com tão generoso gesto, Adriano Moreira acrescentou uma outra montanha à cadeia que emoldura a cidade. Agora uma montanha de livros à qual também se pode subir, ganhando um outro ponto para rasgar os horizontes.
É como se tivesse querido chamar a si o papel de S. Cristóvão, oferecendo os ombros às novas gerações de transmontanos. Para que, partindo dos patamares por ele atingidos, eles vejam mais alto e mais longe.
De qualquer forma, uma coisa tenho, à partida, como adquirida. Se um dia, um qualquer Polónio entrar na Biblioteca Adriano Moreira e perguntar a um qualquer leitor o que está a ler, ele não responderá como Hamlet («Palavras, palavras, palavras»). Ao contrário do personagem de Shakespeare, aquele leitor diria seguramente:
«Vida, vida, vida»!
Além de livros, Adriano Moreira ofereceu também à cidade e ao povo de Bragança as suas condecorações, insígnias honoríficas, diplomas e trajes. O que, para além de aumentar o peso quantitativo da liberalidade, lhe empresta uma acrescida e nova carga simbólica.
Com este gesto, Adriano Moreira como que deposita aqui as máscaras dos mais importantes papéis que o autor do Grande Teatro do Mundo o foi chamando a representar.
E porque máscara e persona se identificam ao nível do radical etimológico, é, de algum modo, a pessoa de Adriano Moreira que fica aqui. A oferecer-se ao diálogo. A oferecer lição e magistério. E a sinalizar o caminho. Um caminho sistematicamente pejado de dificuldade e obstáculos, povoado de Adamastores, de Cilas e de Caríbdis, em princípio invencíveis… para os outros. Não para o transmontano, com suas constelações de valores e seus códigos de virtudes. Esses conhecem(os) o caminho que leva de Grijó de Vale Benfeito ao fim e ao tecto do mundo. É o sonho transmontano.


Professor catedrático da Universidade de Coimbra.