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Luís Salgado de Matos

Um democrata cristão num Estado Novo falhado

Em 1961, parecia que o nome de Portugal em África ficaria associado às chacinas e às contra-chacinas, à propagação do napalm, a umas patacoadas sobre a civilização cristã e ocidental e à exploração económica do aborígene. Adriano Moreira foi então uma referência, mesmo para os que não acreditavam que em 1961 fosse possível um colonialismo político bom. A generosidade é sempre atraente e o jovem ministro, morigerando selvas a golpes de diplomas legislativos ministeriais reformistas, dava aos portugueses uma imagem deles próprios bem melhor do que a triste realidade.

O Estado Novo rapidamente o poria numa prateleira prateada. Adriano e Salazar eram ambos rurais, ambos professores universitários de Direito, ambos superinteligentes e charmosos, ambos civilistas, ambos antimilitaristas, ambos compreendendo a impossibilidade de governar Portugal sem um acordo entre a Maçonaria e a Igreja Católica. Eram concorrentes.

Salazar porém sabia que Adriano tinha cometido um erro: não tinha escondido o seu antimilitarismo. Adriano fora advogado do general Mendes Godinho e, opondo-se a Santos Costa, opusera-se ao Exército do Estado Novo. Ora o Estado Novo tinha um código genético militar, como vimos no dia 25 de Abril de 1974. A tropa tinha Adriano na sua mira política desde o final dos anos 1940.

Por isso, Salazar sabia que o visceral espírito democrático de Adriano nunca lhe faria sombra: ou a missão de Adriano como ministro do Ultramar corria mal, e nesse caso seria substituído sem dificuldade, ou corria bem, e então Adriano teria entrado em conflito com os militares, pois os conflitos entre civis e militares são inevitáveis em tempo de guerra, como a que então vivíamos em Angola; bastaria ao autocrata das botas de meio cano aproveitar-se de um desses conflitos, e ganharia de certeza, pois sabia que as cartas estavam marcadas contra o seu ministro pois, como acabamos de ver, a tropa estadonovista há muito suspeitava dele. A missão correu bem, contra todas as expectativas. O jovem ministro era entusiasmante, as reformas tinham êxito generalizado, a televisão transmitia-as sem mentir, e nem houve conflitos de vulto entre o civil e os militares. O inevitável conflito entre o civil e os militares aconteceu porém. Adriano quis levar a Universidade para Angola e Salazar, universitário de passagem, aproveitou o caso para sacrificar um universitário à tropa colonial.

A universidade sacrificada à tropa significava que a guerra colonial, que era uma ocasião de democratizar o Estado Novo, foi usada para bunkerizar o regime. Para democratizar o Estado Novo, bastaria que, nas eleições presidenciais de 1965, o almirante Sarmento Rodrigues sucedesse a Tomás. Tomás distinguira-se por ser o único almirante a levar a pasta de Salazar e Sarmento, quando ainda não era capitão-de-mar-e-guerra, demitira-se de governador da Guiné, batendo o pé a Salazar, que desencadeara uma campanha anti-maçónica contra Norton de Matos, nas presidenciais de 1949. Adriano Moreira tinha tido demasiado êxito, Salazar não podia perdoar-lhe, pois sabia que a continuação desse êxito, com a inerente democratização do Estado Novo, o obrigaria a passar á Caixa Geral de Aposentações – e, para evitar a aposentação antecipada, preferiu sacrificar Adriano Moreira, sacrificar uma geração a mais 13 anos de guerra estúpida e sacrificar o Estado Novo, impedindo-o de sobreviver pela democratização.

Porque Adriano não era do mesmo gene de Salazar. O autocrata de meia bota era um produto da I Guerra Mundial, democrata-cristão arrependido e convertido ao maurrasismo. Adriano era um democrata cristão da II Guerra Mundial e um democrata por arrepender.


Professor Catedrático do ISCTE