Anselmo Borges
Um católico
Em 1961, parecia que o nome de Portugal em África ficaria associado às chacinas e Adriano Moreira é católico, logo naquele sentido da etimologia grega da palavra: segundo o todo, universal, ecuménico. Cedo se apercebeu da urgência do diálogo ecuménico e inter-religioso – o que ele chama o espírito de Assis, no contexto do Concílio Vaticano II –, nomeadamente com os muçulmanos, mas sem esquecer, e por isso mesmo, que não há identidade europeia sem os valores cristãos e que geograficamente há Europa onde se vir o campanário. Por outro lado, politicamente, impõe-se a urgência de pensar algo que aponte para uma governança mundial.
É católico também – católico praticante – no sentido de professar o cristianismo na sua vertente e configuração do catolicismo. Algumas vezes, «sempre por razões fáceis de entender», acode-lhe ao temperamento «o anticlericalismo transmontano».
Mas conta nas suas Memórias a amizade com vários padres e bispos – foi o padre Alberto Neto, da Capela do Rato, que presidiu ao seu casamento. Evidentemente, tem dúvidas, mas acredita que na morte não acaba tudo – confia em Deus –, nunca abandonou o eixo imóvel (os valores) da roda que gira (a História). Continua a pensar que a fé é amparo das famílias. «Nunca adormeci sem rezar as orações que
a minha mãe me ensinou», confessa.
A profissão cristã católica tem uma dupla face: a mística e a ético-política. O que Adriano Moreira mais critica é o relativismo: o que acontece está legitimado porque aconteceu. Mas previne: ou o Ocidente reabilita a ética ou o prognóstico sobre esta área do mundo é reservado. É preciso trazer a ética para o governo, para o ensino, para as instituições. O Estado «não pode ser independente da ética, para se limitar a si próprio e saber os limites que não pode deixar de estabelecer».
A Igreja enfrenta grandes desafios. Hoje, o apelo à transcendência cresce desordenadamente. O sentido de pertença é cada vez mais frouxo. Os valores desmoronam-se. Aí está, pois, a imensa tarefa da evangelização. De qualquer modo, «a defesa da dignidade dos homens exige instituições poderosas». Entre elas, «uma Universidade realmente autónoma» e, precisamente, «as Igrejas independentes e respeitadas».
Contou-me que, quando se despediu, em Lisboa, de D. Sebastião Soares de Resende, que queria morrer na sede da sua diocese, a cidade da Beira (Moçambique), este lhe disse que voltasse a ler São Tomás de Aquino e Teilhard de Chardin. Foi o que fez, entendendo-se assim o que anima a sua vida: o vínculo dos valores perenes e da atenção à História que muda.
Como ministro do Ultramar, o que fez senão concretizar politicamente a mensagem do bispo Soares de Resende e a doutrina social da Igreja, assente na dignidade inviolável da pessoa humana e nos seus consequentes direitos? Revogou o Estatuto dos Indígenas, proclamou a igualdade das mulheres, multiplicou os liceus, instalou os institutos de Serviço Social, instituiu os Estudos Gerais, enunciou a via da «autonomia progressiva e irreversível».
Como académico insigne, com os pés assentes no chão da História, exige de si o que espera dos mestres: «o esforço de ensinar para a incerteza» e não esquecer que os homens estão sujeitos a ser dominados pelo que Ionesco chamava a contradição – ele supõe que não há contradição – entre «a inutilidade do útil», que é a sociedade do trabalho e consumista, e «a utilidade do inútil», que são as artes e os valores.
A sua conduta orientou-se pelo contributo a dar para o júbilo gratificante que seria podermos ter, «ao redor do mundo, uma força moral não-agressiva, convergente, praticante da regra da igualdade do género humano, cheia de amorosidade, cristãmente ecuménica, podendo ser extremamente eficaz pela observância da regra de que não são as nossas palavras mas as nossas obras que rezam».
Na sua vida longa, sempre vigilante e consciente de que «assumir responsabilidades no processo é imperativo absoluto», olhando para o mundo e sobretudo para Portugal, faz suas, com a imensa sabedoria que possui, as palavras do padre António Vieira sobre os pecados do tempo: «Uma das coisas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O Ministro que não fez grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado; a fazenda pode-se restituir, a fama, ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição alguma».
No seu caso, estas palavras não se aplicam e pode inclusivamente orgulhar-se de ser o único ministro do Ultramar que não recebeu a Ordem do Império, sinal evidente do seu reformismo e oposição à política ultramarina. E continua a apontar caminhos para evitar o desastre.
O brilho da inteligência, a nobreza de carácter, a fé cristã ecuménica, a visão humanista e cosmopolita da política no sentido originário do termo, fazem deste homem um sage (um homem sábio), que honra Portugal, a Igreja e a Humanidade.
Padre, Professor de Filosofia na Universidade de Coimbra