O tempo tríbulo português
1. Um velho conceito latino ensina que as palavras voam e os escritos ficam – verba volant, scripta manent-, parecendo apontar os caminhos alternativos da perdição ou da salvação da memória dos factos, das ideias, dos valores e dos homens. E todavia Jesus Cristo apenas escreveu uma vez, sobre a areia, não ficando lembrança alguma da mensagem, para, ao contrário, sabermos da sua mensagem oral tudo quanto os discípulos finalmente reduziram ao testemunho dos evangelhos.
A contradição aparente com a sabedoria tradicional do preceito latino, contradição que pode encorajar o descuido da anotação da vida referenciável, resolve-se com o entendimento de que o discípulo dá forma à percepção a que chegou na data em que decide interromper, com o documento, a criatividade talvez arbitrária da tradição oral.
Tem interesse insistir neste ponto porque, nas áreas da vida mais desamparadas da ajuda divina, parece que os agentes da tradição oral tendem para assegurar a credibilidade do relato e a atenção dos auditórios pelo expediente de manterem sem alteração alguns pontos de referência ou frases de reserva, preenchendo com imaginosas variantes todo o restante espaço narrativo.
A intervenção da codificação, usando uma escrita, que algum servidor do verbo decide em qualquer data, é um limite à criatividade futura dos intermediários, que de então em diante se querem menos poetas e mais letrados.
Para evitar a cólera de Ulisses, o bardo ameaçado disse: “arrepender-te-ás nos tempos futuros se tirares a vida ao cantor. O meu canto dirige-se simultaneamente aos deuses e aos homens, e a mim próprio instruo, mas é de origem divina a minha vocação. Para cantar para ti ou para um deus”. O facto de os mandamentos serem escritos nas pedras da lei, e todos os grandes doutrinadores originarem a codificação do que pregam, parece todavia uma advertência que não dispensa o bardo, nem diminuiu a importância do canto livre, nem impede a variação de sentidos de todas as mensagens, nem amarra a obra cultural que sempre se libertará para evoluir longe do criador; mas a advertência ensina que o tempo é tríbulo, e que a capacidade humana de inventar os futuros não vem acompanhada de igual liberdade de recriar o passado ou de ignorar a circunstância do presente.
O tempo tríbulo exige simultaneamente a preservação da memória, a percepção da conjuntura e a intuição dos valores, para não acontecer que se viva e decida fora do tempo. Algum evangelista terá algum dia de interromper o bardo, usando qualquer das maneiras de fixar as versões, para que a memória do passado não seja eliminada pela inovação retroactiva.
Teremos sempre percepções e reinterpretações variáveis do primeiro elemento de tempo tríbulo, que é o património da vida acontecida. As contradições das leituras são inevitáveis, as valorações sempre conflituosas, as propostas de futuro necessariamente plurais, mas tudo referido ao incerto fio da memória que tece a unidade dos três pontos do tempo. E ainda assim tudo fragilizado pela natureza da relação do homem com a vida. Escrevia o Padre António Vieira, na História do Futuro, submetendo-se a riscos que por então não profetizou: “que historiador há ou pode haver, por mais diligente investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informação? E que informações há-de haver que não vão envoltas em muitos erros, ou de ignorância, ou de malícia? Que historiador houve de tão limpo coração, tão intenso amador da verdade, que o não inclinasse o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afecto”.
2. Devemos a Gilberto Freyre a definição e uso deste conceito operacional do tempo tríbulo, que se afigura de assinalável utilidade na área das ciências sociais, e particularmente da ciência política. Precisamente a revolução da informação, que aparece como uma das mais assinaláveis mudanças deste século, fez crescer a importância metodológica do conceito, porque a luta pelo poder alargou-se no sentido da mundialização, e aprofundou-se em termos de não haver praticamente instituição ou célula social em que o acesso à direcção não seja precedido de um contencioso de grupos, facções ou personalidades... A cenografia dessa luta política tem uma vertente bárdica que dá acolhimento à liberdade incontrolada desses contemporâneos anunciadores dos futuros, os candidatos e agentes do poder político, também frequentemente inventores dojpassado.
O exame do processo revela que o discurso moderno de intervenção é estruturalmente tridimensional, não obstante a mesma fonte e o mesmo suporte dos órgãos institucionais, quer no domínio das políticas internas, quer na área das relações internacionais.
O primeiro objectivo estratégico da intervenção nessa luta política é sempre a captura do poder, pelo que o discurso, adaptado à cenografia do regime em vigor, mobiliza imagens e motivações que visam o consentimento e não se embaraçam de maneira fundamentalista com a preservação da integridade dos factos, do respective significado, ou dos valores realmente envolvidos. Algumas das mais divulgadas e duradouras técnicas de captura do poder, pelo ou sem consentimento, não hesitam em adoptar a liberdade de redefinir a documentação histórica para recuperar a coerência retroactiva entre o discurso e os factos da vida das comunidades em causa.
Em vez de aceitarem a prudência que recomenda não exceder a mentira razoável na luta pelo poder, procuram diminuir a distância entre o pregado e os factos usando a expeditiva maneira de alterar os registos.
Sendo comum referir o processo de radical mudança em curso da ordem internacional à queda do Muro de Berlim em 1989, é apropriado recordar como essa liberdade em relação aos factos foi usada durante meio século pelo regime soviético, que todavia não manteve o exclusivo.
Logo a seguir à tomada do poder, Lenine publicou um decreto sobre o controlo da imprensa, anunciado como provisório para tranquilizar os espíritos. Nos considerandos afirmava expressamente: “todos sabem que a imprensa é uma das armas mais poderosas da burguesia. No momento crítico em que o novo poder operário e camponês tem de consolidar-se, é impossível abandonar esta arma, actualmente tão perigosa como as baionetas e as metralhadoras nas mãos da burguesia”.
Não obstante proclamações como as de André Gide, de 1936, no seu Retour de l’URSS, e a confirmação que fez nos Retouches, de 1937, a capacidade de monopolizar, mesmo no campo dos adversários externos, o condicionamento das percepções, foi demonstrada em relação ao passado histórico, ao presente totalitário, e ao futuro ideológico, criando uma imagem eficaz, servida por uma cenografia meticulosa.
Em 24 de Dezembro de 1949, o Comité Central do Partido Comunista da URSS enviou uma carta ao secretário-geral Estaline, que terminava assim: “Aceita, mestre e guia, nosso melhor amigo e nosso companheiro de combate, os nossos ardentes votos de longos anos de saúde e de trabalho pesado para bem do partido bolchevique, do povo soviético, para felicidade dos trabalhadores do mundo inteiro.”
E instrutivo comparar este documento com o relatório que Kruchtchev apresentou em 1956, no XX Congresso do Partido, descrevendo os “erros e abusos” do falecido secretário-geral. Ali concluía que, “possuindo um poder ilimitado, entregava-se ao arbítrio e aniquilava as pessoas moralmente e fisicamente. Daqui resultava que ninguém podia expressar a sua própria opinião”. Todavia, em 1938, o jugoslavo Anton Ciliga publicara um livro intitulado Au Pays du Mensonge, onde denunciava, com fraca voz, o concentracionismo soviético, mas o testemunho, vigorosamente atacado pelos donos do poder, parecia destinado ao esquecimento.
Fruto da amarga experiência, talvez deva hoje ser considerado indiscutível, como a primeira medida cautelar da verdade, salvaguardar a futura leitura livre do tempo tríbulo, abrindo o caminho para um regresso dos homens à autenticidade.
Quando o regime nazi executava o projecto da “solução final”, destinado a eliminar o povo judeu da face da Europa, recorrendo como de hábito a uma cenografia apropriada, não pôde organizar defesas eficazes contra o testemunho de Anne Frank, a rapariguita judia cujo Diário, recuperado em 1950, permitiu fazer compreender a realidade àqueles que não a tinham vivido nem sabido. Nem o regime pôde defender-se do testemunho de Martin Gray, vítima em Treblinka, o qual, em Au Nom de Tous les Miens, aparecido em 1971 pela intervenção de Max Gallo, dizia: “Choro. Mas não choro por mim próprio. Que sou eu? Um homem ainda vivo. Choro por eles, neles, porque sou eles, o seu sofrimento, a sua vida destruída, este futuro que não conhecerão.” Sempre a força da palavra, ou dita ou escrita, ou na voz do bardo, ou na versão do evangelista, ou no registo do cronista, liberta da cenografia que a violenta, que por algum tempo, mas nunca para sempre, torna impossível a percepção autêntica do tempo tríbulo em que todos vivemos e nos consumimos.
3. A experiência da segunda metade do século que está a findar mostra que a revolução da informação não alterou os termos de referência desta questão maior, que é a da autenticidade das mensagens, a confiabilidade dos registos, a substituição do real pela cenografia. Trata-se sempre da intervenção humana, em regra do poder político, mas nem sempre desse poder, a impor a degenerescência dos valores orientadores das capacidades técnicas e científicas alcançadas.
O avanço das técnicas da comunicação foi seguramente a causa de uma das revoluções globais mais significativas levadas a cabo pela geração dos homens ainda vivos. De algum modo tornou possível, ou consolidou, porque lhes deu consistência, todas as restantes mudanças estruturais que deram ao mundialismo a vigência que no passado tinha sido anunciada ou pressentida pelos doutrinadores e profetas.
Pela primeira vez, a unidade da terra e a unidade do género humano, ultrapassaram os patamares do saber geográfico e do imperativo ético. A interdependência é geral entre os povos e os governos, de tal modo que os teatros estratégicos são todos comunicantes, e os factos de cada área convergem na inquietação global, e permanente, de todos e de cada um dos centros decisórios, e na consciência e inteligência de cada homem.
O massacre da Praça de Tiananmen, o desastre humano de Angola, o conflito racial em Los Angeles, a simulação de julgamento em Timor, desafiam o mesmo e fundamental sentimento de justiça, em todos os homens de todos os meios culturais e geográficos do mundo, suscitando certamente reacções desencontradas, mas provocando um movimento global de atitude participante.
As grandes injustiças da terra única para um só rebanho humano, designadamente a fome, a violência, a doença, a degradação do ambiente; assim como os interesses comuns, por exemplo o mar alto, a Antártida, o outer-space, as energias não renováveis; ou as ameaças maiores, tais como os riscos nucleares, a multiplicação dos arsenais militares, as armas químicas e biológicas, estão presentes na consciência ética universal em grande parte porque a revolução da informação tornou possível despertar simultaneamente a atenção e a inquietação da totalidade do rebanho humano.
Mas novamente a degradação do compromisso da técnica com a ética, os desenvolvimentos a velocidades diferentes das investigações e soluções em cada um desses domínios, tornam possível a submissão da opinião mundial à cenografia gerida por competidores que instrumentalizam a opinião pública.
O conflito do Golfo, que mobilizou as forças ocidentais contra a agressão do Iraque, deu ao mundo a experiência nova de seguir a batalha nos televisores domésticos.
Aparentemente teríamos chegado ao ponto mais alto do sonho de Wilson, quando viu na opinião pública mundial o tribunal que faltava para assegurar a paz pela justiça.
Mas rapidamente se tornou claro que os povos não tinham sido admitidos à visão da guerra, porque apenas lhes tinha sido fornecida uma imagem profissionalmente organizada; e também foi claro que o género humano, desta vez, tinha sido unificado na condição de audiência passiva de uma grande cátedra, sem distinção de raças, de culturas, ou de crenças.
Os novos bardos informam e doutrinam a uma velocidade que ultrapassa a capacidade normal da memorização crítica dos ouvintes, o que, quando é possível ter um raro intervalo da vida conversada dos clássicos, faz duvidar de a capacidade dessa cátedra ter disposto do tempo mínimo necessário à detecção, à comparação, à selecção e à racionalização do caudal de notícias debitadas.
Não se trata já e apenas do risco de falsear a percepção dos actos individuais, porque estão frequentemente em causa a imagem, a integridade, a acção de povos, de países, de organizações internacionais.
É significativo que, finda a guerra-fria, e desmantelado o Pacto de Varsóvia, um dos seminários da NATO que ganhou em relevo e importância internacionais foi justamente o que lidou com a opinião pública. No ano de 1993, o Seminário de Bruxelas teve a especificidade de assumir que à mundialização da cátedra informativa corresponde a mundialização do fenómeno da opinião pública.
Por isso, e pela primeira vez, foram convidados especialistas da Europa Central e Oriental, assim como da Comunidade de Estados Independentes (CEI), para acompanharem os tradicionais representantes dos aliados.
Os responsáveis trataram de colocar três questões: “percepção pública dos riscos para a segurança internacional; imagem da NATO no Ocidente e no Leste; attitude do público em relação aos riscos devidos às armas nucleares”.
A transformação da população mundial em audiência de uma cátedra informativa, regida por uma nova espécie de bardos, frequentemente em nome de ignorados profetas, corresponde a uma cenografia mundializada e ameaçadora, pela eficácia demonstrada no sentido de tornar impossível uma percepção confiável dos factos, das decisões, dos objectivos e dos valores em debate e confronto.
Algum dia, uma réplica do relatório ao XX Congresso dos Soviéticos abre caminho à verdade guardada nos arquivos, nas memórias inéditas, nas confissões anotadas pelos novos confessores que são os investigadores da história do presente.
Pode fazer-se a guerra em nome das grandes liberdades e do ideal da democracia mundializada; pode mobilizar-se o espírito de sacrifício de dezenas de povos e de Estados para colocar um ponto final nos crimes contra a Humanidade; é possível criar a imagem do mal absoluto colada ao adversário existencial que se pretende reduzido à rendição incondicional: a cenografia não impede que um dia, inevitavelmente, venha a explodir na consciência universal a verdade das experiências metódicas, fria, e implacavelmente levadas a cabo utilizando seres humanos inconscientes da instrumentalização brutal a que foram submetidos, para duvidosamente enriquecer os conhecimentos sobre a energia atómica.
A preservação da memória, a palavra recolhida e abrigada das agressões da cenografia, procuram tenazmente a abertura, que sempre encontram, para repor a implacável verdade, com o mistério de que, por regra, a justiça não pode ser reposta.
4. A mundialização dos interesses da Humanidade, que parece chegar neste século ao ponto ómega terrestre de Chardin, agudizou todas estas questões, sobretudo em relação aos pequenos Estados e pequenas comunidades, que conseguem um acesso difícil e frágil aos mecanismos da cenografia política.
O direito à imagem não pode ser recusado apenas aos homens enquanto pessoas, também é um direito que não pode ser recusado a cada povo nesta situação de interdependência global. A questão da percepção recíproca, que ajudou a tornar doloroso o processo lento do encontro das etnias e culturas diferentes, é inevitavelmente diária e múltipla em vista da estrutura da comunidade internacional.
A experiência dos blocos, a guerra por procuração, os povos tomados dispensáveis ou esquecidos, tudo revela a importância da imagem, dos condicionantes exogenous da percepção recíproca, e o permanente risco de agressão à memória exacta que integra o tempo tríbulo da nossa vida individual e comunitária.
Este problema deve inquietar sobretudo as pequenas comunidades estaduais cujo estatuto é sempre posto em causa nas épocas de grande revisão da ordem internacional.
Tem ele certamente muito que ver com os interesses fundamentais dos portugueses, cujo tempo tríbulo tem andado exposto a desafios que simultaneamente desvirtuam eventualmente o passado, obrigam a rever a medida da capacidade soberana de decidir, afectam a formulação de um novo conceito estratégico nacional.
A história de uma acção que, sem rejeitar o passivo, deu contributos notáveis para a actual unidade do mundo, tem de confrontar-se com cenografias ideológicas que servem habitualmente interesses de poderes dominantes.
Uma área cultural, de dimensão multicontinental, e da qual a soberania foi retirando, com maiores ou menores acidentes, até ao programado ponto final de 1999 em Macau, é objecto da intervenção de Estados e organizações poderosas, claramente animadas pelo propósito de estabelecer zonas de influência, e de impedir que a derrubada estrutura imperial possa dar lugar a nova reorganização do convívio de todos os povos que criaram raízes comuns, independentemente da etnia, da cultura originária ou das crenças.
E todavia a experiência ensina que esses povos regressarão inevitavelmente às raízes, e que muita da renovação dos nacionalismos que se agitam nas áreas onde vigoraram outros impérios é uma redescoberta das raízes a partir da mobilização da memória.
Preservar a memória desta vasta comunidade de povos e culturas, que pela maior parte a confiavam antes apenas à palavra, é um serviço indispensável que terá recompensa nos progressos da cooperação pacífica e criativa dentro das normas da nova ordem em progresso.
Salvaguardar os arquivos de Macau, nessa área onde o poder dominante recusará em regra admitir que a presença ocidental faz parte do seu património histórico e cultural; preservar os arquivos da Índia, onde a potência dominante não parece recusar assumir nenhuma contribuição externa; garantir aos povos de África o acesso à memória de um passado que lhes pertence, mas que está à guarda das instituições portuguesas e com elas terão de cooperar; evitar que o desencontro das memórias anime leituras infundadamente incompatíveis das historiografias portuguesa e brasileira - são exemplos de questões que exigem uma clara estratégia cultural, para além das questões maiores da preservação da identidade, que inquieta perifericamente todos os países europeus, especialmente os mais empenhados na construção de uma unidade política europeia.
Naturalmente, a questão da língua é inseparável destas inquietações, e de novo insistimos na urgência de organizar um verdadeiro Instituto Internacional da Língua Portuguesa. São milhões de seres humanos que a usam, sem esquecer Nossa Senhora de Fátima, que também falou em português. Mas justamente porque é de todos, e queremos que todos a considerem sua, e queremos que nenhum ceda à tentação de mudar a língua oficial do seu país, é que não devemos deixar a iniciativas de outros, só porque nos atrasamos, a chamada de todos à participação na responsabilidade de defender esse património comum. Deste vosso Congresso vai certamente sair reforçada a vontade de agir com presteza, porque a única coisa que verdadeiramente podemos fazer com o tempo é não o perder.