Monumento aos combatentes
Talvez nesta cerimónia cívica, destinada a honrar os combatentes da guerra no ultramar português, fosse apropriado fazer ouvir apenas os clarins, num dos toques que misturam os sons da agonia com os sons da glória. Mas é costume antigo que os cidadãos procedam a cerimónias públicas em honra dos que combateram na guerra, erguendo a bandeira da Pátria, e que magistrados do Estado procedam a uma oração de agradecimento e louvor, secundados por alguém do povo que foi servido pela coragem dos que morreram e dos que sobreviveram.
Assim procediam os gregos, tal como minuciosamente nos conta Tucídides, ao relatar as cerimónias celebradas em honra dos mortos na guerra do Peioponeso. O solene cortejo dos carros que transportavam os restos dos sacrificados, que seriam enterrados no lugar sagrado, incluía uma urna vazia dedicada ao soldado desconhecido, o combatente ignorado ao qual nem pai, nem mãe, nem irmão, nem amigo, podiam dispensar os cuidados pios. Também hoje estará entre nós.
Na cerimónia referida, o orador foi Péricles, que deu nome ao século mais renomado da história da Grécia, era o primeiro homem de Atenas na palavra e na acção, e foi quinze vezes estratego, na guerra defensiva e na guerra colonial.
Este comandante supremo das forças armadas foi em honra dos mortos na Guerra que proferiu o discurso matricial da democracia, desmentindo o conceito de que as palavras voam e os escritos ficam. É notável que o registo do discurso se tenha ficado a dever ao aristocrático Tucídides, que, assegurando a eternidade da palavra do chefe político adversário, e embora injustamente exilado da Pátria, dedicou ligeira anotação ao infortúnio pessoal.
Perante os combatentes vivos, e correndo as exéquias dos que não tinham sobrevivido ao combate, as discórdias sobre a orientação do Estado, no qual, lembrava o orador - “todos dizemos livremente a nossa opinião sobre os interesses públicos” eram caladas por respeito à supremacia dos valores que presidem à doação incondicional do combatente que cumpre o juramento de aceitar o risco total.
Dizia Péricles: “a maioria dos que até este momento pronunciaram discursos neste lugar, fez o elogio deste costume antigo de honrar, ante o povo, aqueles combatentes que morreram na guerra, mas a mim me parece que as solenes exéquias, que publicamente celebramos hoje, são o maior elogio daqueles que, por seu heroísmo, as mereceram”.
Por isso aqui estamos hoje, participantes de uma cultura europeia onde avulta o legado da Grécia, inaugurando o monumento em honra dos combatentes no que foi o ultramar português, erguido neste pequeno triângulo sagrado da terra portuguesa: lá em cima, na colina, a servir de vértice, a Capela de S. Jerónimo, onde rezaram capitães-de-mar-e-guerra, e, seguindo a linha do Tejo, a Torre de Belém da partida para as índias, o mosteiro das descobertas, e agora o monumento àqueles que combateram a batalha que nos coube na guerra que pôs ponto final no sistema político euromundista, e que levou todas as potências da frente marítima europeia a chamarem as legiões a Roma.
O tempo acelerado da mudança das estruturas mundiais, que coube todo na vida de uma mesma geração portuguesa, a qual sofreu por três vezes, desde 1945, a redefinição das fronteiras do Estado, dá um sentido renovado ao preceito de Mouzinho, quando disse que este País é obra de soldados. Desde aquele dia em que, neste lugar, o velho do Restelo advertira contra o risco das lonjuras a que os governantes lançavam o Reino, até à intervenção militar que desmobilizou o império, foram numerosos os regimes, os programas partidários, os governos personalizados, as revoluções políticas, e sempre, fiéis ao juramento, foram os combatentes que asseguraram um espaço, de geometria variável mas vasto, onde a acção missionária, a intervenção civilizacional, a troca dos padrões de conduta, os enxertos de homens, definiam uma zona cultural específica, que ficou e dura para além da derrocada da estrutura imperial europeia e portuguesa.
De acordo com a lição grega, é assim apropriado que a Liga dos Combatentes, que venera e representa essa continuidade de serviço, tenha assumido, com outras veneráveis instituições da sociedade civil, o dever de levar a cabo a homenagem cívica em que participamos. A magistratura que tem a dignidade de Comandante Supremo das Forças Armadas inclina-se perante a memória gloriosa dos mortos e a honra dos vivos que participaram no combate, mas não intervieram no processo político a que obedeceram.
Disse o estratego Péricles: “já que os nossos antepassados admitiam e aprovavam este costume, eu devo também submeter-me a ele e tratar de satisfazer da melhor maneira possível os desejos e sentimentos de cada um de vós. Começarei, pois, a elogiar os nossos antepassados. Pois é justo e equitativo render homenagem à recordação”.
Neste caso, no dia de hoje, recordamos também antepassados vivos, porque aqui estão, uns válidos e activos, milhares mostrando as cicatrizes dos ferimentos e mutilações, alguns marcados pelo tempo inexorável, muitos dos componentes das forças e unidades do Exército, da Força Aérea e da Marinha que integraram portugueses de várias etnias, muitos tendo pertencido às forças especiais que ficaram no imaginário colectivo, como os pára-quedistas, caçadores especiais, fuzileiros e comandos, os quais podem desaparecer da orgânica renovada das forças, mas estão para sempre inscritos no historial da instituição militar.
Os novos tempos, que exigem uma nova definição de um conceito estratégico nacional, mas resistem a deixar ver os contornos dos desafios do futuro que nos visita, ou até já vive entre nós, todavia fizeram saber que os combatentes não são dispensáveis, e que as forças armadas continuam a ser exigidas para participar na implantação e manutenção da paz pelo direito.
Ninguém, no exercício das responsabilidades efectivas do poder político, no espaço europeu e fora dele, sabe com segurança dizer a respeito da nova ordem mundial nada mais rigoroso do que opinar que acabou a antiga.
Todavia, os planos de contingência multiplicam-se, porque os perigos surpreendem sem conceito director de resposta, e os combatentes obedecem, tantas vezes incapazes de identificar as novas bandeiras e o que representam.
As participações, simbólicas ou efectivas, de intervenção ou de apoio, mas exigindo sempre o combatente disponível, não podem ser recusadas, e militares portugueses estão presentes na África e no Mediterrâneo, ainda que sem conceito estratégico nacional seguro, mesmo incerta a medida e a forma em que podem ser harmonizadas as vocações atlântica e europeísta, a história e o novo horizonte A difícil arquitectura da segurança europeia vai exigir novos valores, novos conceitos de fidelidade, novas formas de alianças e lealdades, novos teatros estratégicos assumidos, novo perfil das forças armadas, mas sempre o combatente: que executou a reconquista, que assegurou a independência, que salgou o mar com lágrimas de Portugal, que ancorou na Índia e definiu as fronteiras do Brasil, que cantou o Hino da República com os imperativos de firmar as fronteiras dos territórios de África, que morreu em La Lys para evitar a espoliação colonial pelas grandes potências, que não desertou, nem traiu, que muito legitimamente considera que Os Lusíadas são o seu livro, frequentemente mal com os homens por amor d’El-Rei, e mal com El-Rei por amor dos homens.
Por causa deste património estamos aqui, sem querer esquecer que nenhum povo recebe a sua herança histórica a benefício de inventário. 0 passivo também tem de ser assumido, e a leitura de Os Lusíadas, que trazem a contabilidade do activo, não dispensa a leitura de O Soldado Prático, mais dedicado à contabilidade do passivo. Mas hoje, e aqui neste triângulo sagrado do Restelo, na celebração cívica do combatente, a primeira leitura é a de Os Lusíadas, e na liturgia do dia não cabe a segunda leitura.
O conceito de combatente está juridicamente fixado pelo direito internacional, que, em certas circunstâncias, abrange o levantamento geral da população. Com rigor técnico, ou sem ele, é justo lembrar a dívida histórica que temos para com as mulheres portuguesas, combatentes também em muitas frentes, nessa aventura do Reino lançado a longe. Escassamente povoado, e guarnecendo as armadas de cada ano com os jovens, na força da vida, que pelo caminho morriam muitos, e dos outros regressavam poucos, as famílias, as casas e a economia não podem ter deixado de estar frequentemente regidas pelas viúvas de homens vivos que caracterizaram continuamente a paisagem social portuguesa.
Foi assim também com a guerra de África, e outras contingências, como a da emigração, quer a tradicional em direcção aos trópicos, quer a europeia desta metade do século, multiplicaram essas mulheres combatentes na defesa das estruturas da sociedade civil, que, sem ela não há acção do Estado que tenha consistência.
Antes de aparecerem na Força Aérea, como enfermeiras pára-quedistas, durante a guerra a que se dedica este monumento, abrindo assim caminho à actual definição jurídica da sua participação, por séculos sustentaram aquele combate num país frequentemente em armas, e agora participam nas forças regulares.
Está na Avenida da Madeira, junto do edifício do Ministério da Defesa, uma estátua agora chamada de Nossa Senhora de África, mas que antes estava no pátio interior do referido edifício, onde a mandei colocar para homenagear o esforço combatente secular das mulheres portuguesas.
Perdeu-se assim a homenagem, que era certamente modesta, mas o descuido exige que seja remediado, então com outra grandeza. Porque são homens e mulheres os combatentes cujas lágrimas salgaram o mar, e homens e mulheres estão no combate deste tempo tríbulo português – passado, presente e futuro – em que homens e mulheres nos consumimos e renovamos.
Esta é uma homenagem essencialmente nacional, desassombradamente feita num fim de século em que excessivas vezes ouvimos que está em crise o Estado nacional.
Tem-nos parecido que está em crise o Estado soberano tal como há poucos séculos o construímos e usamos, mas não está em crise a nação que as estruturas políticas se destinam a servir. Nascer no seio de uma Nação não é uma escolha dos homens, aconteceu-lhes. Mas decidir ficar é um acto de amor, é um exercício de liberdade, é um voto. Até ao sacrifício da vida, é o voto dos combatentes. Por isso, talvez nesta cerimónia apenas devêssemos ouvir os clarins.