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D. Sebastião de Resende, profeta em Moçambique

1. O ano de 1940 é uma referência temporal importante no processo de esgotamento do conceito estratégico imperial português, que veio a receber um ponto final em 1974.


Em Junho desse ano as tropas alemãs desfilaram triunfantes em Paris, e uma nova guerra civil dos ocidentais, a segunda que seria chamada mundial pelos efeitos, veio a destruir a ordem internacional euromundista, que tivera esta o seu primeiro documento fundador no Tratado de Tordesilhas de 7 de Junho de 1494, entre D. João II de Portugal e Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão.


Foi justamente em 23 de Junho de 1940 que se inaugurou em Lisboa a Exposição do Mundo Português, chamada por Augusto de Castro “... apoteótico coroamento do Período Imperial das Festas Centenárias”, as da independência e da restauração, que tinham coincidido.


Não é fácil encontrar, na literatura da época, quem pudesse ir mais longe do que François Jacob ao proclamar: “Personne ne connait le tournure que prendra l’Histoire. Rien n’est joué, jamais.”


A guerra-relâmpago da ocupação da Polónia pelas forças alemãs, a derrota da França, a campanha da Rússia, a inicial humilhação ocidental no Pacífico, foi tudo avaliado predominantemente de acordo com a metodologia da balança de poderes, cuja variação fizera oscilar as simpatias governamentais dos raros países não envolvidos no conflito mundial.


A ideia de uma Nova Ordem, nessa perspectiva, tem sobretudo que ver com o directório do sistema, dependente da vitória militar, não com previsíveis mutações das estruturas e das regras. Que os impérios viessem a desagregar-se em consequência desta Segunda Guerra Mundial foi admitido apenas quando o esgotamento dos recursos próprios obrigou a rever a logística das soberanias, sendo talvez Churchill o símbolo mais dramático da capitulação dos projectos de governo perante os factos. Tinha proclamado que não fora nomeado Primeiro-Ministro para assistir à liquidação do Império, e todavia seria o primeiro, depois do que se chamou a paz, a doutrinar a reconciliação com a Alemanha, para salvar o que restava do Euromundo no dia da vitória. No ponto mais alto do Império, Lord Asquith, na Conferência Imperial de Londres de 1911, proclamara: “no Reino Unido e em cada uma das grandes comunidades que representais, somos e queremos manter-nos como os donos em nossa casa... Não é menos verdade que somos e queremos manter as nossas identidades, é evidente, mas dentro de uma identidade maior”, e nessa mesma convicção se apoiou o grande líder da aliança ocidental na guerra de 1939-1945, para ter depois de se render aos factos.


Foi apenas três décadas mais tarde que, os que partiram para a guerra de 1939 com este espírito, voltaram a recordar textos como o famoso de Anatole France de 1905, que, no livro intitulado Sur la Pierre Blanche, denunciaria a colonização escrevendo:


“(A França) despendeu profusamente homens e dinheiro para que o Congo, a Cochinchina, o Anão, o Tonquim, a Guiana e Madagáscar comprem o algodão de Manchester, as armas de Birmingham e Liège, as aguardentes de Dantzig e as caixas de vinho de Bordéus em Hamburgo. Durante setenta anos despojou, desalojou, atacou os árabes para povoar a Argélia de italianos e de espanhóis.”


Neste tipo de avaliação não entravam outros factores que não fossem os que respeitavam aos interesses do Estado, entendidos de acordo com uma concepção datada, muito tributária da vantagem de dominar soberanamente as fontes de matérias-primas e os mercados, acrescendo um eventual regulador do excesso de população ou, mais concretamente, do excesso de mão-de-obra na metrópole submetida a um regime de liberdade de mercado.


Na sede da Igreja Católica, também a morte de Pio XI, em 10 de Fevereiro de 1939, não foi aparentemente ocasião para elaborar uma nova prospectiva sobre a mudança da ordem mundial, porque a primeira e aparente grande questão era a da Guerra civil da Cristandade, uma vez mais desencadeada.


O falecido Papa Pio XI, que exerceu o pontificado desde 1922, tinha-se preocupado profundamente com a renovação do sistema de relações entre Igreja e Estado, e por isso assinara um número considerável de concordatas durante o seu longo reinado: com a Letónia em 1922, com a Baviera em 1924, com a Polónia em 1925, com a Roménia, a Lituânia e a Itália em 1929, com a Áustria em 1933 e finalmente com o Reich alemão em Julho de 1933.


Os Acordos de Latrão, que consagram a soberania do Vaticano, foram o ponto cimeiro do seu pontificado, resolvendo definitivamente a questão provocada pela unificação política da Itália: os acordos foram assinados no palácio de Latrão, em 11 de Fevereiro de 1929, pelo Secretário de Estado Cardeal Gaspari e por Benito Mussolini, Duce de Itália.


Quando, em 1940, em plena guerra mundial, e celebrando o oitavo centenário da fundação de Portugal e o terceiro centenário da Restauração, o Estado Português assinou com a Santa Sé uma Concordata e um Acordo Missionário, punha termo, pelo método habitual, ao conflito em que vivia a consciência dos católicos desde a Revolução republicana de 1910. Por isso mesmo, a hierarquia representada por D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Cardeal Patriarca de Lisboa, proclamou o ano e os actos diplomáticos como sendo dos mais notáveis e promissores acontecimentos das celebrações. De resto, na Carta Encíclica Saeculo Exeunte Octavo, de 13 de Junho de 1940, Pio XII não apenas se associa às celebrações da “gloriosa e nobre Pátria”, mas também honra o sangue derramado pelos missionários portugueses, “semente de cristãos”, estimula ao aproveitamento da “hora actual” que considera “particularmente propícia” para incrementar o espírito missionário nacional, pede que se reze para que aumentem as vocações, insiste no aprofundamento da secular política destinada a criar um clero indígena e irmãos indígenas. Com a Bula Solemnibus Conventionibus, de 14 de Dezembro de 1940, reorganizava a administração territorial em Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique e Timor, aqui separando a colónia da Diocese de Macau, e erigindo uma nova Diocese, “que se chamaria de Dili”. O Acordo Missionário partilhava, entre o Estado e a Igreja, a execução do conceito estratégico nacional que constava do Acto Colonial de 1930, o qual estatuía no artigo 24.°: “As missões católicas portuguesas do Ultramar, instrumentos de civilização e influência nacional, e os estabelecimentos de formação de pessoal para o serviço nelas e do Padroado Português, terão personalidade jurídica e serão protegidas e auxiliadas pelo Estado, como instituições de ensino”.


É talvez excessivo entender que, não obstante a guerra, era o conceito de vida habitual que presidia a esse ano de 1940, mas parece de admitir que tudo lembrava a prática europeia da balança de poderes, uma política que se traduzia em avaliar o desequilíbrio provocado pela guerra, chegar a uma paz negociada, reequacionar a hierarquia relativa das potências, recuperar os vencidos para uma nova intervenção, assegurar a permanência do sistema internacional restaurado.


Esta previsão, que os factos desmentiram, obrigando progressivamente os intervenientes às capitulações que pareciam ser o contraponto das vitórias militares que alcançaram, foi mais duradoura em Portugal, o único país colonizador da frente marítima europeia que preservou um estatuto de neutralidade, mais tarde chamada colaborante, quando as contingências da guerra obrigaram a ceder a utilização dos Açores aos Aliados.


A Inglaterra chegou ao conceito dos ventos da história com Harold MacMillan, De Gaulle substituiu a intransigência armada na Argélia pela oferta da “paz dos bravos” e as soberanias europeias foram abandonando as dependências coloniais.


A África foi o último continente a tornar-se independente do sistema, sucedendo-se a Líbia em 1951, a África do Norte francesa entre 1956 (Tunísia e Marrocos) e 1962 (Argélia), as restantes colónias africanas francesas e Madagáscar em 1960, a África inglesa entre 1954 (Gana) e 1964 (Malawi, Zâmbia), o Congo Belga em 1960.


Entretanto, em 9 de Outubro de 1958, faleceu o Papa Pio XII, e sucedeu-lhe o velho Patriarca de Veneza, Cardeal Angelo Giuseppe Roncalli, então com 77 anos, o qual escolheu ser chamado João XXIII.


No dia 11 de Outubro de 1962, presidindo a uma missa solene na Basílica de S. Pedro de Roma, abriu o Concílio Ecuménico Vaticano II, que levou a Igreja Católica a uma das mais importantes e históricas reflexões sobre o seu papel.


Tinham-se passado vinte anos sobre as comemorações portuguesas do Duplo Centenário; na noite de 15-16 de Março de 1961 foram assassinados, no Norte de Angola, talvez 1200 brancos e 6000 negros bailundos; às 23 horas e 15 minutos de 17 de Dezembro (hora local) do mesmo ano, a União Indiana iniciou um ataque military contra Goa, Damão e Diu (Estado da Índia), expulsando Portugal, secular titular do Padroado, daquela que tinha sido chamada a Roma do Oriente.



2. A diocese da Beira foi criada pela Bula Solemnibus Conventionibus, de 4 de Setembro de 1940, no ano em que a Exposição do Mundo Português fazia a síntese comemorativa do Duplo Centenário da Independência e da Restauração, no dia em que as notícias divulgavam que Hitler prometia “arrasar as cidades inglesas” e transformar Londres no ponto mais crítico da Batalha de Inglaterra.


D. Sebastião de Resende foi nomeado seu primeiro bispo em 21 de Abril de 1943, no mês em que as notícias da revolta no gueto de Varsóvia, esmagada pelos alemães, e a descoberta do fosso de Katyn com os restos de 4000 oficiais polacos assassinados pelos russos, abalavam a esperança de os sacrifícios da guerra serem recompensados por uma ordem internacional mais justa.


Em 16 de Julho desse ano, a Inglaterra apresentou ao Governo Português o pedido de concessão de bases aéreas e facilidades navais nos Açores, e o país adoptou aquilo que seria chamado “a neutralidade colaborante”, o estatuto mais próximo da ruptura da paz, que pôde todavia ser preservada.


O novo bispo tinha sido acusado por Aquilino Ribeiro, numa polémica de 1940, de “lusitanismo insaciável”, e era conhecida a sua intervenção de professor no sentido de “reatar o fio luminoso das escolas de Coimbra e de Évora, reconquistando a nossa posição intelectual na história do pensamento”.


Passando da cátedra para as responsabilidades do Governo, poucos se apercebiam de que o fazia quando estava iniciada, no mundo ocidental, uma época de conflito de fidelidades, ou de traições bivalentes, porque a guerra desfizera o anterior equilíbrio das fidelidades múltiplas. Um fenómeno que inspirou a Arthur Miller o livro As Feiticeiras de Salém, e ao qual todos os povos pagaram algum tributo.


Os EUA atingiram o ponto crítico dessa questão quando, na década de cinquenta, esteve em pleno exercício o método inquisitorial do senador McCarthy, apostado em eliminar qualquer traço suspeito do comunismo ou subversão, mas não faltaram exemplos noutros países. O físico Robert J. Oppenheimer, director do Projecto Manhattan que levou à construção da primeira bomba atómica (Los Alamos, 1945), foi afastado por criticar as experiências com a bomba H (1954), acusado de ser mais fiel aos interesses da Humanidade do que aos interesses dos EUA; em 1960, o Manifesto dos 121, encabeçado por Sartre, clamava pelo dever de ajudar os argelinos oprimidos, enquanto os generais mais condecorados da França, Salan, Gouraud, Jouhaud e Challe (1961) eram exautorados e presos por se revoltarem contra o abandono da soberania na Argélia por um general De Gaulle, fanático da grandeza da França, que todavia oferecia a “paz dos bravos” aos argelinos para assegurar alguma dignidade à derrota; no Leste, em Outubro de 1961, Khruchtehev denunciava severamente o governo do carismático Estaline, cujo corpo foi retirado do mausoléu de Lenine.


Os factos, inscritos nesta corrente, viriam a abalar severamente a percepção dominante nas celebrações portuguesas do Duplo Centenário em 1940, porque o bipolarismo que vinha a caminho não obedeceria ao modelo anterior da balança de poderes, e a questão das fidelidades múltiplas também se tornava progressivamente aguda, até que a Revolução de Abril de 1974 colocou um dramático ponto final nas responsabilidades coloniais portuguesas.



3. 0 panorama religioso de Moçambique era extremamente complexo. Utilizando o Anuário Católico do Ultramar Português (1960) do Padre Albano Mendes Pedro, e o Atlas Missionário Português do Padre Prof. Silva Rego (1964), o Padre Doutor António Silva, S. J., sintetizava a situação deste modo (Moçambique, ISCSP, Lisboa, 1964): o maometismo mais denso nas regiões mais cultivadas do Norte, com relevo junto ao litoral nos distritos de Moçambique e Cabo Delgado, na linha Moçambique-Nampula e na margem ocidental do cabo Niassa, tendo ainda boa representação nos centros populacionais de Quelimane, Beira, Inhambane, João Belo e Lourenço Marques; o protestantismo, mais denso nas regiões cultivadas do Sul, com uma série de missões desde Bela Vista, abaixo de Lourenço Marques, até Nhalaio, ao norte de Inhambane; o catolicismo apresentava-se com maior profundidade e densidade nas mesmas regiões do sul e do norte em que avultavam o protestantismo e o maometismo, e afirmava-se na linha Beira-Umtali e na Angónia. Quanto às religiões tribais, “mais fortes no interior, assimilam dentro da sua estrutura elementos externos, defendem-se do diálogo ou afectam por sua vez, com seitas neocristãs, os destribalizados dos grandes centros, ou de regiões mais adiantadas”.


Em 1958, o administrador de Lourenço Marques, Afonso Ivens Ferraz de Freitas, num estudo inédito apresentado no Centro de Estudos Políticos e Sociais (ISCSP) que o signatário dirigia, identificava todavia várias “seitas religiosas gentílicas” na província de Moçambique, dizendo poder afirmar que “o movimento religioso está intimamente ligado ao movimento político e, este, identifica-se perfeitamente com o movimento do ‘nacionalismo africano’ “.


As seitas referenciadas eram as seguintes:


a) Etiopismo: African Methodist Episcopal Church, Igreja Etiópica Luso-Africana, Igreja Luz Episcopal, Núcleo Negrófilo de Manica e Sofala, Ethiopian Orthodox Church, African Orthodox Catholic Church, Missão Nacional Etiópica Moçambicana, African Gaza Church, African Congregational Church, Igreja Africana Congregação da Colónia de Moçambique, Compound Mission, Associação Religiosa de Moçambique, Tabernáculo Congregacional Evangélico Africano;


b) Sionismo: Igreja Sião União Apostólica Cristã dos Negros Portugueses da Província de Moçambique, The Holy Catholic Apostolic Church in Zion, The Church of the Holy Ghost, Chembitas ou Nazaritas, African Full Gospel, Igreja Sião União Apostólica Cristã dos Indígenas Portugueses da Província de Moçambique, Igreja Fé dos Apóstolos em Moçambique, Zion Apostolic Church of South Africa, The Congregational Church of God in South Africa, The White Church Makadonia Christian Apostolic in Zion Damasku of South Africa, Holy Banner of Ethiopian Apostolic of Zion Church;


c) Diversas: Tocaísmo e Watch Tower.



0 Dr. Franco Nogueira, Ministro dos Negócios Estrangeiros desse período, que atingiu o pico mais crítico entre 1960 e 1974, escreveu uma crónica oficiosa que centra o processo colonial português no diálogo com a ONU e os EUA, analisando tudo sobretudo em função da capacidade diplomática de produzir argumentos.


A real situação da evangelização, de uma fragilidade a exigir sacrifícios e milagres, tal como a dolorosa teoria dos combates na sociedade civil forçada a reflectir sobre a sua estrutura, e, depois, as dificuldades e angústias da frente militar são negligenciadas, embora relate com minúcia, e sem fontes, entrevistas e encontros, em que não participou, ou estados de alma por onde não passou.


Por isso, nessa crónica ministerial aparece um D. Sebastião, olhado com profissional benevolência burocrática e culpado de propiciar argumentos úteis ao adversário americano e servir de referência obrigatória a oposições internas ao regime.


Os factos foram escrevendo uma história diferente da crónica diplomática, e D. Sebastião foi um dos rejeitados inspiradores do realismo ético, que pretendeu acudir com a mudança racional a tempo de impedir que o imobilismo fosse um motor de mudança.


A resposta que deu ao desafio da evangelização foi extraordinária e, padre conciliar, levou ao Concilio Vaticano II a sua experiência, contribuindo para a leitura dos novos tempos.


Como é frequente no processo político em geral, e comum na experiência portuguesa, a essência das divergências é coberta pela engenharia do Estado Espectáculo, que esgota as atenções em incidentes menores, se possível desgastantes para os opositores.


O trajecto de D. Sebastião não foi isento dessas abordagens, inquietado por questões administrativas com o Estado, enredado em incidentes com a censura oficial.


E, todavia, a sua questão não era a do regime, era a dos portugueses no mundo, o seu adversário não era a lógica diplomática, era o problema da justiça na sociedade colonial, os seus interlocutores não eram as élites partidárias, eram os pobres, e, no cada vez mais grave conflito português das lealdades múltiplas, o seu eixo da roda era o Evangelho que nunca considerou incompatível com o antigo “lusitanismo insaciável” de que fora acusado.


A estratégia do aguentar, que incluía não tocar nos interesses estabelecidos e sediados essencialmente na metrópole, na qual os bailes do século e os cruzeiros do século animaram a alta-roda ao esquecimento do que se passava no terreno, opunha D. Sebastião a advertência de que “a África está vivendo as suas horas de decisão definitiva”, incitava ao exercício da “audácia atrevida e de profunda fé cristã”, antevia (Diário, 31 de Janeiro de 1963) que “haverá no futuro muito sangue a correr em África... África terra de mártires no futuro”.


Ao conceito oficial de que à Igreja africana só era lícito intervir no seu próprio governo, dogma, moral e disciplina, o Concílio, e o padre conciliar D. Sebastião de Resende, opunham a insistência na necessidade e urgência da acção social. Pelo menos desde 1945 que combatia o trabalho forçado e a arbitrariedade nas relações de trabalho; defendia desde 1951 a criação dos estudos universitários na África portuguesa; sustenta em 1961 a necessidade da “integração plena e total de pretos e brancos de Moçambique”, defendendo, em 1966, contra os factos teimosos, que se acabe “de uma vez para sempre com o ultrapassado Estatuto do Indigenato”. Apoiado pelo advogado Dr. Carlos Lima, morreu em luta com o governo e em defesa da sua liberdade profética de pastor.



4. Visitei D. Sebastião de Resende na Beira, pela primeira vez, em 1952, quando o Ministro Almirante Sarmento Rodrigues me encarregou de estudar a reforma dos serviços prisionais do Ultramar. Fui seguindo as suas intervenções por devoção e também por obrigação de quem regia a disciplina de Política Ultramarina no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Tive a oportunidade de, na qualidade de Ministro do Ultramar, revogar o Estatuto dos Indígenas, por Decreto de 6 de Setembro de 1961; criei, pelo Decreto-Lei n.°44 530, de 21 de Agosto de 1962, os Estudos Gerais Universitários de Moçambique e Angola, integrados na Universidade Portuguesa, decisão que previamente tornei pública na Beira, em cerimónia a que D. Sebastião esteve presente, e por homenagem que lhe era devida; publiquei o Código de Trabalho Rural, do qual disse o Doutor P. António Silva, S. J.: “quanto à presença missionária no campo social e das relações do trabalho, pode dizer-se que a sua doutrina se encontra recentemente confirmada amplamente, no Código de Trabalho Rural, onde, se a presença das missões não é directa, a coincidência de pareceres é muito real”.



5. Em 1965 fui visitá-lo em Roma, onde participava activamente no Concílio, mas já então dava a impressão de ser “como as velas dos altares, que dão luz e vão morrendo”.


Vi-o pela última vez no Hospital do Ultramar, quando ali repousou, regressado da Suécia, em Janeiro de 1967, de onde voltou com a certeza da morte próxima, e com urgência de chegar à Beira porque ali queria morrer. Fui acompanhado do inesquecível Prof. Silva Rego, e ambos escutámos em lágrimas as suas palavras de incitamento, nada que lhe dissesse pessoalmente respeito. Pura doação. Quando, depois da sua morte, em 25 de Janeiro, foi decidido dar destino ao Diário de Moçambique, onde ficaram arquivados textos das suas mensagens, o engenheiro Jorge Jardim convidou-me para escrever regularmente uma crónica que estivesse na linha tradicional do jornal. O conjunto delas formou um livro que chamei Tempo de Vésperas (Lisboa, 1971), e que publiquei quando o último governo da Constituição de 1933 proibiu que continuassem a aparecer. A pequena e pobre gota de água foi uma crónica intitulada Os Gatos, que o Diário de Notícias, de Lisboa, reproduziu como exercício de estilo, e que o Governo considerou, com razão, que tinha mais intenção. Pus no livro esta dedicatória: “A memória de D. Sebastião de Resende, Bispo da Beira, missionário, pastor, irmão de todos os seres vivos, é dedicado este livro de crónicas, escritas para o jornal que fundou, e que também morreu.”


Aquando do II Congresso das Comunidades de Cultura Portuguesa, que realizei em Moçambique, em 1967, a bordo do Príncipe Perfeito, a navegar no Índico na rota de Vasco da Gama, fui visitar a sua campa rasa, no cemitério de Santa Isabel, e que pretendeu calcada pelos visitantes. As flores que a cobriam não permitiam que o voto fosse cumprido. Ainda tentei, sem êxito, recuperar o Livro do Povo de Deus, que me recordava de ter visto na Catedral e onde os fiéis dialogavam com Deus sobre as suas fraquezas e aspirações. Fiquei sempre preocupado com o dever de preservar, tão largamente quanto possível, a mensagem escrita de D. Sebastião, o nosso Bispo da África em mudança. É o que se tenta com esta publicação, possível pela cooperação devotada do bispo D. Francisco Nunes Teixeira, de Monsenhor Duarte de Almeida, do Prof. Roque Cabral, do Prof. Carlos Azevedo, do padre Sebastião Brás e do Dr. José Maria Paiva Raposo.