José Barata Moura
Adriano Moreira: Aspectos de um Pensamento
1. INTRÓITO. Carl Schmitt sustentava que aquilo que define o critério do campo do «político», em geral, seria uma orientação determinada pela distinção das categorias de «amigo» (Freund) e de «inimigo» (Feind) (1).
Os afectos são, sem dúvida, elementos empiricamente relevantes no que diz respeito a uma arrumação das posições e dos comportamentos, bem como à composição das facções. Mas a repartição das águas, nesta pendência, e os próprios sentidos da luta, operam-se, porventura, fundamentalmente a partir do jogo dialéctico de instâncias que radicam mais fundo na espessura social dos relacionamentos de que o
viver na sua concreção histórica se tece e entretece.
Não é todavia este o momento azado para enveredar pela exploração debatida de polémicos meandros desta natureza. Quanto ao que para aqui directamente mais importa, tenho, por experiência, para mim, que a amizade supera – em sentido hegeliano também (2) – a divergência, noutras profundezas enraizada, que, nas nossas sociedades, reflecte, acompanha, e perspectiva, o exercício da política (mesmo que só na forma intentada).
Da menagem à homenagem corre, respeitoso, o sentimento do preito, originariamente vincado em promessa de fidelidade obrigada – que as distorsões rastejantes da vassalagem, de algum jeito, acabaram por diminuir e por obscurecer pelo grosso das caricaturas supervenientes.
Trata-se, contudo, de um instituto multissecular que sobrevive (transformado) ao contexto medievo primário das relações feudais em que começou por se estabelecer.
Prefiro pensar, de resto, que do preito de menagem à homenagem hodierna – a par da treta do número das letras, e mais além do leque dos salamaleques da praxe – avulta a estatura testemunhada de homem, que se distingue e celebra.
A amizade, adormecida nos reservados poeirentos da memória, não se apaga, insiste.
Jaz contudo aí como passiva potência a que se não cuida de animar o potencial.
Está latente, mas não lateja. A amizade – como qualquer sentimento – só persiste no elemento da vida, não porque se cultua, mas porque se cultiva. Ainda que – tal como as outras culturas – possa decerto ser objecto de formas diferenciadas de cultivo.
2. UMA REVISITAÇÃO DA AMIZADE. Haverá quem alvitre – porventura, não sem motivo – que a visitação dos amigos está a cair em desuso.
As aceleradas trepidâncias da contemporaneidade tornaram-lhe exíguo o espaço, porque lhe vão comendo a disponibilidade do tempo. O arrastar da costumada cerimonialidade do acto embotou-lhe o gume do interesse, porque os ronceiros mecanismos da habituação a tomaram de assalto, e lhe foram fazendo deperecer o sentido.
Será. Mas, da visita dos amigos também faz parte a revisitação da amizade.
E essa toma caminhos e preenche insterstícios – aos menos atentos e praticantes apenas – insuspeitados.
Gostaria por isso hoje – modestamente, e em (imerecido) rápido sobrevoo – de revisitar convosco alguns aspectos do pensamento de Adriano Moreira.
Para esta «recuperação da vida conversada», sairam-me da estante – no caso, que acaso não é – as crónicas elaboradas para o Notícias da Beira nos finais dos idos anos 60 do século passado, que, afortunadamente, o volume Tempo de Vésperas, em devido tempo, recolheu (3).
3. RECORTES. Limito-me a alinhar uns quantos recortes. Recortar não é apenas cortar – de um contorno que fora se deixa. É também extrair e libertar para a convivência pensante em contextos renovados.
Os textos recortados começaram por ser pretextos. Em conjuntura incerta, porque inserta na contraditoriedade (não experimentada) de transformações em desenvolvimento.
Iam dirigidos a uma actualidade que tinha nome, e actores, e vítimas.
Que tinha os seus «gatos» – «correndo por onde há peixe», «a mudar de gusto conforme os cardumes» (Os gatos, p. 133).
Que tinha também os seus «ratos» – entregues a seu «ofício», «roendo sempre», «no silêncio discreto do proveito» (A flauta, p. 139).
E homens «ilhados nos seus problemas», «não sabendo da alegria da comunhão» (Mensagem, p. 91).
E «nações amarradas», e o «rei nu» que é «obrigatório olhar, e proibido ver» (Longe, p. 65).
E, no meio de «um charco que não tem sequer a grandeza dos pântanos (O charco, p. 45), o legado das «vozes que disseram a tempo, até que algum dia a palavra se transformará em acção» (O legado, p. 47).
E a esperança – que Adriano Moreira, no seu ideário, e no seu itinerário, reformador, acalenta e exprime – de «uma convergência humana que some e não destrua, que faça de cada esforço um patamar de todos» (O patamar, p. 64).
4. UM PODER DE INTERPELAÇÃO. Os recortes que passarei a alinhar não carecem de comentário encartado para lhes conjuntar o todo, não requerem uma exegese autorizada para lhes canonizar a ortodoxia, não precisam da amplificação Sonora de um apresentador de serviço para que se façam ouvir. A força do pensamento que neles se plasma reside intrinsecamente também no poder de interpelação de que são portadores.
Adriano Moreira não é um filósofo – capacidade não falta, sabedoria também não, mas é de conveniência elementar manter algum respeito pela vontade que preside ao intento de dar forma ao teor das intervenções. Adriano Moreira, porém, é certamente um homem que pensa – e que, pensando, muito de enriquecido nos devolve ao pensar. Num incitamento inteligente a que ele se prolongue.
Volto a folhear o livro. E vou anotando. Quase ao sabor do desfilar das páginas, os fragmentos vão desenhando a constelação.
5. O TEMPO. A reflexão sobre o tempo – e sobre os tempos. Bastaria quase recitar a tabuada dos títulos das obras para nos apercebermos da nuclearidade do tema na produção de Adriano Moreira. Mas vale a pena fazer-lhe ressaltar alguns dos traços que o marcam.
Preciosa é a vida, porque é trabalho do tempo. Um trabalho que, nem cego, nem atarantado, tem que ser um trabalho que, mesmo na pequenez eventual dos seus resultados, é irrenunciável.
«O tempo. É uma tarefa para a vida inteira, e portanto é a própria vida.». E, de seguida, o grandioso emblema: «Compreender para agir, e agir para compreender». Sem deslumbramentos ilusórios: «Depois de tudo, contribuir modestamente para a construção que é de todos, colocando uma pequena pedra com um breve gesto.» (O tempo, p. 41).
Certo, «a juventude é um bem que se perde a cada dia» (O medianeiro, p. 75) – o tempo cronológico que se desfia e esvai pela porosidade de um passar de que só, de tempos a tempos, não sem um vislumbre de tristeza, se dá conta.
Mas «a História não é romance. Não basta imaginar e compor. Tem de inscrever-se na terra. Com as mãos. Pagando o preço. Numa prestação interminável.» (O preço, p. 117).
Um desconcertado afã sem aparente conserto: «Tudo para ser substituído. Uma canseira.».
Irremediável transitar? Sim, e algum não: «Fica o momento breve da tentativa. Uma só oportunidade. Que não se repete. Fugaz. Improvável. Mas sem renúncia.» (A tentativa, p. 137).
6. DRAMATICIDADES. É a dramaticidade da vida – contra a infligida tentação da indiferença entediada do enfado (O bocejo, p. 125), ameaçada pela estridência rotineira da «moda» que «tira importância às coisas, porque o hábito é inimigo da atenção» (Uma geração, p. 19), desafiadora daquele apilatado «lavar das mãos» que «tem velha tradição» na arreigada teimosia de não ver, e de querer não ter a ver «Nada com o passado. Nada com o mal presente.» (A água, p. 135).
É a dramaticidade dessa «aventura não escolhida, que é viver. Num mundo que nos aconteceu. Mas que aconteceu a todos e não apenas a alguns» (A busca, p. 78).
Havendo, por isso, que não menosprezar, nem desatender, «a vida modesta de quem trabalha e erra, estuda e duvida, tenta e falha, pede e não recebe, ama sem esperança, dá sem recompensa» – uma vida que só a poucos (acantonados na redoma inactiva do privilégio) parece estar-lhes «completamente vedada» (Acaso, p. 56).
Havendo, por isso, de cuidar de prevenir o advento intempestivo, porque leviano, de toda a sorte daquela interrupção brutal que como «violência» acorre aos chamamentos: «A violência é a antecipação do fim. Uma vida para ainda durar. Cortada.
Antes do tempo.» (A violência, p. 97).
É a dramaticidade, em suma, da condição deveniente de uma estadia que, na lábil contingência das heranças sobrevindas, cava a cada homem essa responsabilidade tremenda de que «lhe pertence decidir continuar» (Amarras, p. 69).
7. A CONSTRUÇÃO CIVIL. Porque o «descansar sem motivo é terrivelmente fatigante » (Domingo, p. 29), não deve o cruzar de braços ser, portanto, alcandorado a postura medicamente recomendada para a estação normal.
Porque de obra se trata – e de obra colectiva (4) –, não deve a esperança ver-se confundida com a resignação (lamentosa e malagradecida) das esperas (5), nem o calculismo das expectações converter-se em merenda, ao jeito de maná, dos cues em algum dia caída.
Em rigor – ainda que não na literalidade tabeliónica da classificação das actividades económicas –, estamos no domínio da construção civil, isto é, de uma edificação humana na história de comunidades de seres humanos.
E também aqui horários, cargas, e distribuições, do trabalho conhecem arreliadoras assimetrias:
«Os construtores do mundo, de uso não têm mais do que dez horas para viver. A colheita em regra não lhes pertence. Na festa já lá não estão ou não foram convidados.
Ou simplesmente não vão. O grande destino que lhes coube e cumpriram foi preparar a vinda da undécima hora.» (A undécima hora, p. 22).
Outra é, porém, a habilidosa sina dos precavidos «trabalhadores da undécima hora» que «só prosperam quando as batalhas estão ganhas, os tempos cumpridos, os sonhos realizados».
No momento do festim, não se lhes marcará, por certo, falta de comparência. Todavia, «não são os que ficaram silenciosos, os que não participaram na acção, que fizeram o mundo em que vivemos. Os que fazem o mundo são outros, são os que transformaram as ideias em palavras e as palavras em acção.» (A undécima hora, p. 21).
O tempo da vida é o tempo do trabalho do viver.
8. A LABUTA ESCLARECIDA - Não são só os grandes actos que a memória colectiva retém. Não são só as pequenas ocorrências de significado diminuto, não fora o trombeteio das mediatizações encomendadas.
É também, e na consistência do fundo, o património anónimo da «labuta sem história », tão essencial que nela «ninguém repara» (A partilha, p. 79), o labor singelo de quem «aprendeu o que é preciso saber deste mundo pelo método de olhar e fazer» (Ninguém, p. 61), o ajuntar das «muitas migalhas que faz a obra», no quadro de uma ensurdecedora inconsideração generalizada:
«o pão que se leva à boca custou o suor de muitos rostos, que nunca se olharam, da sementeira à mesa. O homem que se afadiga no trabalho é para atender às urgências de outros que ignora. E que o ignoram.» (A migalha, p. 67).
Mas não se trata apenas da magnificação generosa e estilizada da operosidade formigante. Não se trata apenas da celebração benemerente dos esquecidos, dos deserdados, dos despedidos da ceia, dos que «assim como o incrédulo não tinha salvação» assim também «recebem a sua condenação» (Os pobres, p. 31).
O estaleiro está montado de facto, mas em outras paragens. E aponta, não à edificância (moral) das consciências, mas à edificação (mundana) dos viveres.
Porque «a pensar e a fazer é que se descobre o caminho», «a mão de quem pensa tem de apertar a mão de quem faz, para que a corrente passe. E para que corra nos dois sentidos.».
No fundo, para que, na partilha de um movimento uno, realmente se entrefecundem «o saber de experiências e a experiência do saber» (A busca, p. 77).
9. A ACÇÃO E OS BLOQUEIOS. Na sondagem perspicaz dos esconsos do concreto, a figura do poder não pode deixar de emergir.
Estas crónicas têm voz e mensagem de autor, um tempo determinado para acção, e uma polifacetada plateia de destinatários. Um duro contexto de mágoas, com as quais serenamente importa ir ajustando as contas. Sem a preocupação serôdia das contabilidades justiceiras. Escolhendo o tempo justo.
«Dissertar sobre a navegação, enquanto o barco se afunda, não aproveita grande coisa.». «Ter visto é excelente, mas ter feito é melhor. Sabendo das dúvidas. Mas não temendo a acção. Dissolvendo as dúvidas no fazer.».
E acrescenta a fé do crente: «Agindo e rezando». Com desassombro, «deixando aos fracos a vocação dos epitáfios. Os únicos textos que podem ser meditados sem limite. Com o diagnóstico seguro do passado.» (A dúvida, pp. 99-100).
E daí a acutilância dos remoques – que a direito se vão encarregando de verberar o torto. Contra aqueles que se inventam post festum um presunçoso pedigree de pioneirismo enfatuado, ridículo, bacoco: «Homens que carregam o pesado fardo de sempre já ter dito e de sempre ter lá estado. Se não fosse por existirem textos muito conhecidos que podem dar origem a polémicas deselegantes, facilmente demonstrariam que tinham estado presentes no acto da criação e que o Verbo lhes devia algumas sugestões.» (Acaso, p. 55).
Contra aqueles que se dedicam ao delicado género literário do previdente criticismo a título póstumo:
«Os críticos das coisas feitas parecem ter muito mais trabalho do que quem as faz.
É a legião que, depois das decisões e dos efeitos, sugere a outra coisa. Nunca antes.
Depois.» (A outra coisa, p. 73).
Contra aqueles que se entregam – com com apregoada alma, muito coração, e nenhum discernimento - ao escrupuloso e alarmado exercício do apagamento preventivo de qualquer réstea ou sendeiro de mudança: «não falta quem faça, da sua própria vida, uma exemplar missão de impedimento.». «Se alguém se lembrou de acender uma vela, eles lá estiveram a tempo para assoprar. Perdeu-se talvez alguma luz, mas eles demonstrarão que evitaram um incêndio.» (O charco, p. 45).
Em suma, contra aqueles que – na cauda de um cortejo de infindáveis razões – se julgam sempre, pelos motivos mais nobres, dispensados do risco e das canseiras do fazer.
10. REFLEXÕES SOBRE O PODER. Mas há lições que transpõem a barreira das circunstancialidades avulsas – não por terem em abstracto logrado colher a sublime inspiração do eterno, mas, precisamente, porque, na ocasião, arrancam de meditados fundamentos materiais.
Porque «a grandeza não está em demonstrar como deveriam ter sido ganhas as batalhas perdidas pelos outros. Está em não lhes fugir. Em participar.» –, «o momento da grandeza é o da decisão.» (A outra coisa, p. 74).
O poder remete, sem dúvida, para a disponibilidade de um leque alargado de possibilidades reais. Mas o poder não reside no mero armazém atravancado de aquilo que apenas é em potência. Actualiza-se, no e pelo acto de, a tempo – sopesando as dúvidas, antevendo os riscos, lançando as caminhadas –, exercitar a decisão.
E, quando é mister reflectir sobre a sabedoria envolvida nas coisas do âmbito político, torna-se vital deslindar aquilo que se esconde por detrás da pompa de denominações enganosas – de «uma semântica de conveniências e de oportunidades» que imagina domesticar uma realidade que desleixa: «Não é aceitável chamar prudência à incapacidade de correr riscos, ou chamar ponderação à falta de capacidade para tomar decisões, ou chamar paciência à falta de sentido para agir a tempo.» – «como se a natureza das coisas pudesse ser iludida» (Autenticidade, p. 13).
Não obstante, o encómio do agir será de enfezado socorro na míngua de determinados ingredientes que os governantes (de muitos tempos, e de desvairados lugares), não raro, parecem desconsiderar como miúda fazenda dispensável: «A arte de bem governar andou sempre ligada à arte da poupança.». «Mas há coisas em que não vale a pena passar necessidades. Não se adiante nada em economizar nas ideias. Quando existem, é usá-las. E, sempre que é possível, as próprias.
Poupar, é nas dos outros. Por decência. Havendo precisão, é melhor dizer.» (O dicionário, p. 37).
A mendicância não parece ser, de facto, timbre do poder – muito em especial, quando a miséria (sobretudo, se não apenas no erário) lhe preenche por inteiro os vazios do bojo esburacado.
11. O POSTIÇO E A VOZ PERTUBADORA. A descoberta, vendo bem, só é susceptível de causar alguma estranheza eventual a inocentes no tirocínio, a incautos por vocação, ou a distraídos por comodidade.
«Dá a impressão que alguns poderes se esmeram em, ao mesmo tempo, dizer o que é justo, pensar o que é útil, e fazer o que lhes convém. Fica tudo um pouco equívoco no domínio dos princípios, mas coerente no campo dos interesses.» (A pantomina, p. 49).
E por estes salões de festa irrompe a dança, em que os compassos medidos pelo metrónomo do Direito e o fraseado melódico de algumas disciplinas da Filosofia se manifestamente se atropelam, perante as superiores dificuldades da partitura e a desconchavada desafinação da orquestra: «A jurisprudência dos interesses não se embaraça com a ética. Quando é refinada, adopta apenas uma estética. Esmera-se em tecer mantos de compostura.» (A pantomina, p. 49) – que, por sua vez, poderão, com desenvolta displicência, ser num repente despidos, e logo substituídos por outros a que esteja reservada idêntica função.
Soa o tiro de partida. A corrida aos guarda-roupas começa. Caída a máscara, aluguem-se uns disfarces. Inaugura-se a estação dos «postiços» – «Os consertos da aparência. Que tapam os ocos. Encobrem buracos. E que por isso armam ciladas.»
(O postiço, p. 105).
Pululam, em alta, remendões – que nem das artes da sapataria são competentes oficiais. Tudo estremece, porém, quando o enfeitiçamento se quebra. E o inaudito acontece.
«O poder diz muitas vezes que não. E nunca estranha que lhe digam que sim. Gosta da reverência e conta com ela. O acatamento agrada-lhe. Tende para distribuir as palavras como dádivas. Espera por isso uma concordância agradecida. Um aplauso visível. Ao menos um respeitoso silêncio. Mas está menos previsto que alguém discorde.» (A resignação, p. 101).
Os sarilhos de ter voz pensada – o aborrecimento incómodo de não abdicar do uso dela. A perturbação das sepulcrais e envernizadas catacumbas. O rompimento dos reposteiros da abusão. Uma exigência que é um grito:
«um homem deve ter o direito de dizer que não. E a coragem de o dizer a tempo.
Lembrar que o erro não é privilégio do contribuinte. Saber que o silêncio anima o abuso.» (A resignação, p. 101).
12. O DESÍGNIO EM HORIZONTE. Só aos gritos, porém, também pouco se constrói, até porque a atenção descola do gesto da feitura. No entanto, se não há fazer sem o ir fazendo, também não há feitura sem horizonte.
Sem «desígnio» – um conceito estratégico ainda –, não podem «nem homens, nem povos» viver (O desígnio, p. 119).
Mas o desígnio não nasce, e menos ainda se implanta, sem o apuramento cultivado de uma aguda sensibilidade ao descortinar do «novo»:
– que vem chegando por sinais, antes de se apresentar formalmente,
– para cujo acolhimento importa estar devidamente preparado,
– e que não nos aporta sem o dispêndio de algum contributo nosso.
Daí a contundente castigação de todas aquelas atitudes e maneiras de proceder que, por uma ou outra via, se deleitam com o soterramento de uma esperança trabalhada, ou com o delineamento empolado, catedrático, de uma arquitectura de princípios que, fadada para uma superior normação do acontecer, faz todavia questão de abstrair por completo da própria vida das realidades.
São aqueles para quem o universal não passa de generalidade descarnada, que contempla a chaveta dos sistemas, mas é incapaz de perceber o pulsar dinâmico das existências.
Adiam indefinidamente o viver – ao qual substituem a elegância cerrada das formulas –, porque dele começam por remover, em esfregados passes de higiénica desinfecção, a própria vida:
«Amam as definições e sentem-se definitivos. O mundo que se amanhe como puder, no caso de discordância entre os factos e o arrumo pedagógico. Está a vida ali, na frente dos nossos olhos, mas obrigam-nos a não olhar e dizem que é para não ver errado.
Sempre que encontram alguma coisa de novo, vão ao índice. Este permite-lhes negligenciar toda a parte da vida que não tenha cadastro histórico. Na acção não dissipam as dúvidas, e com dúvidas não agem. A vida que espere. Acontece que, de vez em quando, essa vida esquecida protesta e reduz bibliotecas inteiras a papel de embrulho. Não nasceram para entender nem para ajudar a corrente da vida.» (Os definitivos, p. 59).
13. A NECESSÁRIA IMERSÃO NO REAL. Aquele que, sobre o tarde talvez arrependido,«não viveu nem realizou» refastela-se amiúde nos compensatórios e almofadados cadeirões da «teoria do bom tempo passado» – a golpe de ficcionada engenharia recriativa do realmente acontecido, e por comprazido deslizamento pelas ribanceiras suavizadas da idealização selecta: «depurando a experiência e narrando apenas o desejo» (As vésperas, p. 89).
Aqueles que receiam, e não conseguem, firmar o pé na movência conturbada das vicissitudes do tempo em desequilíbrio para o porvir refugiam-se na estatuição de elaborados «modelos observantes» que exuberantemente saltam por cima do observado em curso de deveniência, e que, não obstante, pretendem fantasticamente domesticar-lhe (por mágica injecção assistida de vaporosos solutos abstractos) a marcha:
«Os inspirados pela ânsia do regulamento querem mais do que criar um mundo.
Querem moldar os mundos que hão-de vir. Deduzem o que deve ser, e impõem.
Para agora e para sempre. Desdenham prever o futuro, decretam-no. Uma solução imprevista têm-na por um desarrumo. Um assomo de criação parece-lhes um pecado.
Para eles, a vida não cria, está às ordens. Agora e sempre, como no princípio.»
(A regra, p. 85).
É o império da confecção dos paraísos artificiais – retroactivos, ou prospectivos. É o consolo de quem se acha a justo título eximido do incomodante embarque nas minudências da consideração, e da imersão, pelo pensamento e pelos actos, na (contraditória) viandância das realidades do aparecer.
A estas derivas solene ou discretamente escapistas, o pensamento de Adriano Moreira parece contrapôr duas perspectivas acentuadamente distintas em que se firma.
Por um lado, o princípio da diversificação histórica e dialecticamente concretizada (lanço mão aqui de categorias que, obviamente, não cabem no léxico que ele emprega, mas que, porventura, não se encontram assim tanto fora do teor que sustenta):
«O que enriquece o mundo é ser diferente. Conservar os legados, mas juntar alguma novidade.» (A regra, p. 85).
Por outro lado, aquilo que designaria por o princípio da confiança operativa esclarecida – de acordo com o qual «o que não pode ser governado», «o impossível», «é apenas o que está para além da mão do homem» (As macieiras, p. 72).
Se bem que no quadro deliberadamente reformista que preside à sua leitura e à sua intervenção, é todavia o campo laborioso – porque muita aradura suada requer – da mediação (6) que, numa patência escancarada, nos fica aberto e devolvido:
«Só podem estar presentes no mundo novo os que ainda são medianeiros. Sem amarras.» (O medianeiro, p. 75).
A mediação leva para além – para um mais além. Enraizada num solo (e entrecruzada sempre pelas dinâmicas que o entretecem), não fica, no entanto, atada à imediatez das positividades estabelecidas, consagradas, que, precisamente, se impõe negar, transcender – numa palavra, transformar.
14. ESCATOLOGIA. Por aqui se rasgam também as avenidas de uma escatologia que se anuncia – honra lhe seja, mais em horizonte pressentida (como um leque de pedregosas possibilidades reais), do que propriamente, com aquela minúcia elocubrante dos utopismos avulsos, descrita no circunstanciado pormenor dos seus putativos conteúdos vindouros.
Uma escatologia assente nos ensinamentos a retirar da momentânea derrota, de entre os quais avulta a promessa (futura, porque a realizar) do ainda não conseguido:
«Como lutadores de uma resistência clandestina, os restos salvam sempre o espírito e o projecto. São pregadores. Desafiando a cólera e o descaso. Muitas vezes ocultas durante séculos, as coisas esperam. Caladas, ou apenas sussurrando. Mas prontas para a oportunidade. Cada uma com a lembrança do todo. Falando nele e na ressurreição.» (A revoada, p. 81).
Uma escatologia que guarda – sem saudosismos deslocados, nem empertigamentos de precedência avocada – uma palavra de melancólica compreensão pelo «destino incompleto dos precursores» (A mensagem, pp. 91-92), agentes transitoriamente vencidos que são, não obstante, antevistos arautos de porvir.
Uma escatologia que, chamando a atenção para o «nosso tempo de vésperas» (As vésperas, p. 90) – de provação no presente e de vigília do ainda não advindo – assinala que mesmo as «longas noites» não deixam de estar «prontas para a inevitável madrugada» (A sementeira, p. 132), e sobretudo que, a cada passo (em frente, e atrás), valoriza «os caminhos abertos para o veleiro de um dia» (A sementeira, p. 131), na espreita e na modelação das «alternativas fecundas» (A busca, p. 78).
15. CODA FINAL. Suspende aqui, e por agora, o seu curso esta viagem. Não foi o apuramento da doutrina que ao longo dela esteve em causa. Menos ainda, uma sua avaliação crítica.
Foi tão-só uma re-visitação – pobre, toscamente amanhada, e mal-serzida – de alguns aspectos do seu pensamento. Ou, talvez melhor: não tanto de o que o autor pensa e de o que ele efectivamente está a transmitir, mas de como esse autor pensa num itinerário que devém o próprio objecto da busca.
Um Amigo. Um irmão que – por outros trajectos, e na diferença dos prospectos e dos projectos – com inapagável firmeza não desiste da demanda.
Ao homem, pois, a homenagem. A um homem que tem consciência praticada da grandeza (exigente, e difícil) que insiste no reconhecimento (num viver prosseguido) de algo de aparentemente apenas singelo:
«Trata-se, enfim,» – diz-nos ele, na sageza de uma interpelação que cala fundo – «não tanto de ser um homem simples, como de simplesmente ser um homem.»
(O verbo eu, p. 43).
1) Veja-se, por exemplo, Carl SCHMITT, Der Begriff des Politischen. Text von 1932 mit einem Vorwort und drei Corollarien, Berlin, Duncker & Humblot, 19966.
2) Para Hegel, com efeito, a «superação» (Aufhebung) corresponde a um movimento dialéctico complexo de simultânea conservação, negação, e elevação de um conteúdo determinado a um estádio mais enriquecido de desenvolvimento. Cf., por exemplo, Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, Wissenschaft der Logik, I, I, I, 1, C, c, Anmerkung; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1969, vol. 5, pp. 113-115.
3) Cf. Adriano MOREIRA, Tempo de vésperas (1971), Lisboa, Editorial Notícias, 20024. As passagens que passarei a citar remetem para a paginação desta edição, indicando-se igualmente o título da crónica a que pertencem.
4) «Quando alguns não participam, são todos quem perde.» (Os definitivos, p. 60).
5) Tão benquista daqueles que, intrigando e metendo empenhos de toda a ordem, «andam pela vida a receber sem dizer obrigado» (Os presentes, p. 83).
6) Mais uma categoria central da dialéctica que, no entanto – e, a meu ver, com proveito –, pode conhecer
conteúdos de outra natureza e outro alcance. Mas isso são também outros contos.
Professor catedrático. Reitor da Universidade de Lisboa, entre 1998-2006.