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Marcelo Rebelo de Sousa

Um destino invulgar e... singular

 

1. As minhas primeiras memórias de Adriano Moreira vêm dos anos 50. Quando meu Pai recordava o condiscípulo do Passos Manuel, na mesma turma e carteira, durante um ano lectivo. E, mais tarde, quando o viu, com alegria, chegar a seu colega de Governo de Salazar, depois de ter acompanhado, com apoio e consideração, o seu percurso nas lides da investigação e do ensino ultramarinos (o que me permitiria folhear e estudar, mais tarde, as obras que oferecera a meu Pai nesses anos pré-Governo).

2. Já nos anos 60, o meteórico sucesso político de Adriano Moreira coincidiu com a travessia do deserto de meu Pai.
Os caminhos – que haviam conhecido um engulho de tomo na promoção universitária do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas (ISCSPU) e sua inserção institucional, apesar de meu Pai ter tentado ultrapassar a rigidez de Marcello Caetano e de Francisco Leite Pinto –, esses caminhos, dizia, afastaram-se por completo.
E não mais se reencontrariam até 1974.
Adriano Moreira – a esperança do Regime no Governo e após ele, até à chegada de Marcello Caetano – é, nos tempos seguintes, um dos mais contundentes adversários da política ultramarina tida por «cedencionista» do Chefe do Governo.
Meu Pai, um dos mais salazaristas dos marcelistas, e, porventura, também dos mais lúcidos, foi até Moçambique e regressou para se juntar aos anos finais do Regime.
Apesar de tudo, o relacionamento entre os dois colegas de outros tempos nunca se romperia (nem Adriano hostilizou meu Pai, nem este alinhou nas fúrias antiadrianistas de algum poder).
E minha Mãe, que nutria por Adriano Moreira uma consideração muito especial, ajudou, sempre, a compor estados de espírito para além da diversidade de temperamentos e de destinos.

3. O pós-74 levou todos até ao Brasil.
Mas Adriano voltaria e – creio que pela mão sagaz de Adelino Amaro da Costa – ainda teria ambição, força e talento para se meter na política democrática e chegar a líder no pior momento possível.
Meu Pai retornaria, reintegrar-se-ia sem dramas, mas entenderia que o seu tempo político passara e seria inglório querer fazer a História andar para trás.
Uma vez mais, duas leituras diferentes, com encontros pontuais cordatos nos anos 90 e na viragem do século.

4. A estas recordações familiares de Adriano Moreira posso juntar as sessões a que assisti no Pio XII, pela mão do inesquecível Padre Aguiar, os seus livros que percorri de princípio a fim, os colóquios e congressos, ou as mesas-recondas, em que o ouvi ou em que com ele participei, os convites que me dirigiu para algumas dessas funções, a testemunha que fui do seu regresso à minha Faculdade de Direito (que for a sua) para dar aulas, já no culminar de uma intensa vida académica.
Em todos esses momentos era impossível não encontrar a sua inteligência fulgurante, a cultura sedimentada, o brilho abrangente, a experiência riquíssima, a versatilidade argumentativa, a preocupação de seduzir os destinatários, o temperamento forte, a distância pensada, a gestão criteriosa do espaço de manobra, com pessoas e situações.

5. E, a partir dos anos 80, a entrada – imparável e soberana – no estatuto senatorial.
Infeliz nos seus encontros com a História – delfim sem sucessão em 1968, renovador sem tempo em 1974, líder sem eleitores bastantes em 1987 –, vingou-se – e bem – Adriano Moreira tirando proveito desse estatuto senatorial. Que todos lhe reconhecem.
Da direita bonapartista – que o sonhou para chefe – e da direita conservadora – que o cultivou com contenção –, e à esquerda liberal – que aprecia a sua abertura –, à esquerda clássica ou pós-clássica – que se rende, suavemente, à inteligência da sua antecipação de futuros.
E, assim, Adriano Moreira deu o salto do terreno falível do Poder da ditadura e do Poder dos votos – em que o tempo e a sorte o não ajudaram – para o mais seguro e duradouro do Poder do magistério.
De que não abusa, ainda quando lhe é extremamente sensível.
Com a originalidade de ter vivido dois Regimes – apenas saltando o PREC –, o que nenhum outro senador seu contemporâneo pode ufanar-se de ter feito, os próprios Álvaro Cunhal e Mário Soares tendo apenas vivido um anti-Regime e, depois, um Regime.

6. Que resta da imagem de Adriano Moreira que retive de meus Pais, quando dele falavam, há mais de 50 anos?
Resta, ainda assim, muito. O estudante sem meios, lutador, com a personalidade (e também a teimosia) transmontana, rápido, enleante, desejoso de ir sempre mais além, fechado no essencial mas sedutor na postura, votado a altos voos no saber, no lidar com os outros, no assumir um destino para a sua comunidade.
Quando me sento e oiço – e, ouvindo, com ele aprendo – Adriano Moreira, numa charla, num debate televisivo, numa achega universitária, lembro-me dessa imagem – dessa esperança que, em rigor, nunca teve caminho fácil, que tinha pressa de crescer e de quem muitos esperaram, em vários instantes, que se afirmasse depressa e se superasse em cada lance da vida.
À sua maneira, cumpriu um destino invulgar. Talvez não, tantas vezes, o sonhado. Por si e pelos outros. Mas um destino verdadeiramente singular. À medida da excelência dos seus atributos.


Professor catedrático. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.