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António Rebelo Duarte

A sabedoria e a simplicidade de um mestre

 

Fui surpreendido, nos primeiros dias de Maio, com um telefonema do senhor presidente da Câmara Municipal de Bragança, dando-me conta do propósito da autarquia de editar um livro em homenagem ao senhor Prof. Adriano Moreira, integrando contribuições de diversas pessoas que com ele tivessem, profissional ou pessoalmente, privado.

Ao corrente de tão inesperado quanto amável telefonema, a justeza do propósito e o objecto da iniciativa impeliram-me, de imediato, para uma adesão ao projecto, ainda que alertando os promotores para a modéstia do contributo, que não da grande honra e gosto na elaboração do depoimento; um duplo sentimento pessoal que melhor se compreende atenta a minha ligação ao senhor Professor, remontada a 1980 – na altura jovem oficial de Marinha a frequentar o Curso Geral Naval de Guerra (CGNG), no Instituto Superior Naval de Guerra (ISNG). Esse convívio viria a reatar-se em 1997, como capitão-de-mar-e-guerra auditor do Curso Superior Naval de Guerra (CSNG), no mesmo Instituto, de cujo corpo docente fazia parte, de há muito, o apreciado Mestre.

Para ser mais preciso, essa colaboração do Prof. Adriano Moreira com a Marinha e o seu organismo responsável pelo ensino superior militar naval, iniciou-se no longínquo ano de 1958, primeiro como conferencista convidado e dez anos depois, já professor do respectivo corpo docente, mediante concordância do então ministro da Educação. Esse vínculo intenso só terminou com a extinção do ISNG, em 25 de Setembro de 2005, acontecendo-me, entretanto, ter sido nomeado, em 1998, professor militar do Instituto, ou seja, «colega» do Mestre e, pouco tempo depois, pasme-se, seu «director», na qualidade de primeiro responsável do ISNG durante os últimos três anos da sua existência.

Por acasos da vida e minha fortuna, essa ligação ao Professor perdurou, para além desse epílogo, até hoje, o que constitui um enorme privilégio, sentimento, aliás, comum aos oficiais de Marinha e a todos aqueles que têm tido a felicidade de se cruzarem ou pertencerem à rede de intervenção cívica e académica daquela tão rica quanto simples personalidade. Por sua generosa iniciativa acabei eleito membro da Academia Internacional de Cultura Portuguesa e, mais recentemente, presidente da direcção do Instituto D. João de Castro, uma associação cultural de interesse público, socialmente relevante por obra e graça do seu «criador» e principal fundador, o Prof. Adriano Moreira.

Como bons portugueses que somos, essa relação vem sendo regularmente reactivada através de animados encontros gastronómicos, onde uma tertúlia civil-militar debate os bloqueios, cenários de regeneração e devir português, contando com um amplo leque ideológico que vai do Prof. Barata-Moura ao Dr. Joaquim Aguiar, do almirante Vieira Matias ao almirante Vidal Abreu.

É a honra de pertencer ao círculo de próximos, se a expressão é permitida, que me encoraja a abalançar nestas singelas, mas sinceras notas, bem ciente de que a falta de engenho só pode ser suprida pela autenticidade do testemunho. Escrevo-as, ainda, na qualidade de discípulo desde 1980, ininterruptamente, porque no convívio com o Mestre, seja na aula, no intervalo ou fora deles, estamos sempre a aprender. Só alguém distraído poderia desperdiçar tão rica experiência de vida e de conhecimento do mundo. Os atentos, esses, escutam sofregamente as múltiplas intervenções públicas, nomeadamente conferências e outras actividades de natureza académica, para que o Professor é repetidamente convidado a participar, sem que lhe conheça escusa. A lucidez analítica e a vivência histórica que, em constância, perpassam dessas intervenções, facilmente se constituem como mais-valia dos eventos e estimulante da nossa curiosidade por um melhor entendimento do mundo e do nosso tempo e circunstância.

Esta capacidade de nos ajudar à compreensão do sistema internacional e da sua envolvente estratégica, ficou reflectida nos diversos louvores e condecorações com que a Marinha entendeu distinguir aquele que tem sido, para si e para os seus quadros, uma referência de cidadão íntegro, de humanista convicto, de servidor público exemplar, de académico competentíssimo, sem esquecer a faceta de homem político empreendedor. Por isso recebeu as mais altas condecorações da Marinha, nomeadamente a Medalha Vasco da Gama (1989) e as medalhas militares de Serviços Distintos (2000) e da Cruz Naval (2008), com fundamento na excelência e relevância dos serviços prestados ao ramo e à qualificação dos seus quadros superiores.
O Prof. Adriano Moreira tem constituído uma enorme «ajuda à navegação estratégica » e um farol para a Marinha, na mesma medida em que se quedou como um valor referencial para a universidade do seu tempo, porque, em ambos os casos, teve a capacidade de discernir sobre o passado e o presente, assim como perscrutar o futuro pelo primoroso entendimento das mudanças aceleradas num mundo que apenas garante a incerteza e a imprevisibilidade da actual ordem, se é que dela se pode falar.

Essa capacidade de leitura estrutural aplicou-a ao serviço de ambas as Instituições, no ensino das disciplinas da Ciência Política, Estratégia, Geopolítica, Segurança e Defesa. Nessa intervenção pública, de genuíno apego à causa colectiva, sempre inspirada nos princípios da doutrina social da Igreja inculcados pela sua progenitora, se houve faceta que mais me impressionou foi a sua imanente capacidade e predisposição para acompanhar a velocidade da referida mudança com intuito prospectivo.

Se olharmos para o relativismo que hoje infecta o mundo ocidental e a Europa em particular, ainda mais avulta a importância dessa capacidade de predizer o futuro numa perspectiva histórica, de razão sociológica, de motivação política, mas também com preocupação profiláctica, tal é a actualidade das suas ideias, reflexões e trabalhos, como que parecendo imunes à usura de um tempo acelerado que marca a nossa contemporaneidade, e que só ocorrem em mentes com memória privilegiada e espírito propenso, apaixonado mesmo, à «descodificação» das modernas sociedades.

É essa leitura e percepção integradas que dão realce ao profícuo labor do Prof. Adriano Moreira, na sua tripla dimensão de intelectual, político e homem de cultura, só ao alcance de figuras com uma noção muito acutil ante das transformações sociológicas. Esse dom exprime-se pelas excepcionais capacidades de análise e racionalização, assim deixando criativo rasto e duradoura marca nos campos do saber e da cultura, porque movido tão somente pelo desejo de justiça e utilidade, o que explica em larga medida a eleição dos grandes problemas nacionais e internacionais como o foco da sua predilecta reflexão, no sentido em que o seu acelerador intelectual radica no desiderato de surpreender e denunciar as situações que não se mostrem consentâneas com os valores da vida, subsumidos na dignidade da pessoa e dos povos.

Já fiz referência à capacidade de racionalização e descodificação que o Professor revela no entendimento e acompanhamento do mundo, como o comprovam os sólidos conceitos operacionais que qualquer iniciado ou simples estudante das áreas do conhecimento político, estratégico e das relações internacionais não mais esquece, antes usa ou invoca amiúde.

Muito longe de ser exaustivo, quem não se lembra da dimensão doutrinária e esclarecida mundividência espelhadas nas ideias subjacentes aos arquétipos: do eixo da roda na sua dupla e sobreposta figuração da consistência estrutural e vicissitudes conjunturais; do tempo tríbulo ditando a sua lei no assinalamento da transição do fim do Império Colonial com o seu consistente conceito estratégico nacional, para uma nova era em que se torna necessária a consequente reformulação conceptual com base na Europa, na Língua em contexto de CPLP e no Mar; do euromundismo, designação que criou para definir o sistema dos poderes das soberanias europeias, iniciado com as descobertas e Tratado de Tordesilhas de 1494, até ao seu epílogo com a II Guerra Mundial e a crise do Suez em 1952; da lei da complexidade crescente da vida internacional utilizada para caracterizar a conjuntura pós-guerra fria, com a multiplicação quantitativa e qualitativa de interrelacionados centros de decisão e poderes erráticos, outro dos seus conceitos; da soberania de serviço tendo por valor principal a defesa da identidade através de voz participante no processo decisório e reconhecimento internacional da legitimidade do exercício por via dessa participação responsável e credível no funcionamento do sistema; do país de articulação e fronteira na valorização estratégica de Portugal; do já referido oceano Moreno localizado no Atlântico Sul em cujas margens se situam as novas soberanias de povos com frutificação da mestiçagem e língua portuguesa; dos povos mudos ou dispensáveis que os timorenses simbolizaram durante a mais recente ocupação; da revolta dos passivos que os custos da globalização vêm alimentando; das comunidades transfronteiriças que podem danificar a identidade e coesão nacionais; da governança mundial de que a ONU se incapacita por reproduzir o estado (precário) do mundo; da teologia do mercado como espécie alienadora da sociedade e subjugadora de quase tudo e todos à lei de um mercado sustentado para além das básicas, por necessidades supérfluas e inventadas; e do estado exíguo, ainda passível de inverter, mas para o qual o país parece caminhar inexoravelmente, depois de ter recorrido sempre a apoio externo e de haver regularmente procurado recursos for a do seu território, na sucessão de impérios que são a História portuguesa, e que agora se chama Europa, a mesma que, em meados de Maio, na altura da visita de Sua Santidade a Portugal, colocou as exigências externas que só em última instância alarmaram as renitentes lideranças políticas dos países com graves desequilíbrios macroeconómicos como o nosso. Curiosamente, a mesma Europa que tem motivado alguma desconfiança ao Prof. Adriano Moreira, sugestionado em certa medida pela afirmação de um dos seus autores preferidos, Raimond Aron, quando advertia ser a Europa «um lugar, uma ideia, mas não a unidade».

A sua visão da inserção de Portugal na União Europeia e do próprio processo de integração europeia é de uma enorme riqueza porque respaldada em profundos conhecimentos nos domínios da História, portuguesa e das demais nações europeias, da Ciência Política e da Cultura, nomeadamente a ocidental, razão pela qual a sua palavra, advertência ou registo, merece sempre atenta escuta.

Na altura do cinquentenário da estreita relação do Professor Adriano Moreira com a Armada, aludi, em artigo que escrevi para a Revista da Armada (n.º 425, Dezembro 2008 – «Adriano Moreira e a Marinha, meio século de cooperação estratégica»), ao texto intitulado «O seu navio e os seus heróis», escrito pelo seu grande amigo e também transmontano, almirante Sarmento Rodrigues, reportado ao contratorpedeiro «Rio Lima», sob o seu comando em 1944, onde enaltecia a resistência dos «homens da Marinha». Servi-me dessa alusão com um duplo propósito: em primeiro lugar, sublinhar a cúmplice amizade entre estes dois transmontanos de eleição, tendo por certo o reconhecimento da grande cultura da História Portuguesa e do acervo de valores que via no seu grande amigo Sarmento Rodrigues, de resto, notados como muito comuns da Marinha, instituição que, já nessa altura, o Prof. Adriano Moreira classificava com características, personalidade e atributos muito próprios coincidentes com os valores da Pátria; depois, concluir que a Marinha sabe bem que o senhor Professor se irmana e faz jus ao «espírito e honraria de pertencer ao navio», a mesma Marinha que se honra e envaidece de o considerar, por razão de gratidão e absoluto merecimento, como «destacado membro da sua guarnição», o seu «almirante (de) cinco estrelas».

Estou absolutamente certo que toda a Marinha e as muitas gerações de oficiais ensinados a aprender pelo Mestre, peticionam e aplaudem esta «promoção magna» no reconhecimento do amor que, como cidadão português, lusófono e do mundo, tem dedicado à sua Pátria, onde se inscrevem os já mais de 50 anos de «cooperação estratégica» com a Marinha do seu país.

Por isso me tenho sentido seduzido pela dimensão ética, intelectual e política de um homem cujo exemplo se exprime por saberes sem fronteiras, argúcia de raciocínio, fino humor, lapidares formulações, precisão na abordagem temática seja ela de ordem política, histórica, estratégica, jurídica ou literária, sentido de oportunidade nas reflexões partilhadas, ditos, histórias e peripécias de uma grande mundividência, invejável capacidade de admirar, compreender e aceitar os outros e o mundo, enfim, de fazer e refazer a obra, sempre inacabada que tem sido a concretização do seu projecto de vida, ao longo de um rico e multifacetado percurso. Resumiria a razão deste fascínio a duas palavras: sabedoria e simplicidade, na medida em que só este predicado permite ascender àquele píncaro e condição.

Talvez o leitor melhor compreenda e acredite agora, o sentimento de profunda honra, privilégio também, em razão da oportunidade de exprimir, modesta mas prazenteiramente, o que representa para mim o ilustre Mestre (por definição aquele que sempre ensina, mesmo quando podemos divergir), insigne professor, respeitável colega e inopinado «subordinado», nesta singela contribuição para uma obra em boa hora pensada, porque justamente enaltecedora do grande vulto que decidiu homenagear – o senhor Professor Adriano Alves Moreira, que faz o favor de me integrar no vasto leque dos seus discípulos e admiradores e de me aceitar como amigo.

Almirante